O Chega avançou, na semana passada, com um projeto de lei que pretende proibir “a ocultação do rosto em espaços públicos, salvo em determinadas exceções”, argumentando que, “se o Estado é laico”, não há motivos “para que possam adotar-se e permitir-se a exibição de símbolos religiosos em instituições públicas, como escolas não religiosas, hospitais” e “transportes públicos”. Em segundo lugar, explica o partido, trata-se de uma questão de segurança, porque “a utilização de burcas”(véu que cobre o corpo integralmente, mesmo os olhos, com uma rede) e “niqabs” (véu que cobre o cabelo e o rosto, mas não os olhos) podem ser um obstáculo à identificação. O documento do Chega refere que há outros países que já contemplam, nas suas legislações, restrições ao uso de roupa que oculte o rosto, com especificidades, como acontece em França, Países Baixos, Dinamarca, Áustria, Bulgária ou Bélgica.Lembrando que a Constituição confere “o direito ao livre desenvolvimento da personalidade”, o professor de Direito Vitalino Canas explica ao DN que esse desenvolvimento pode acontecer, desde que não seja feito de “modo ofensivo”, “não tanto do ponto de vista dos direitos, mas da sensibilidade dos outros”.E, continua o constitucionalista, se a lei fundamental consagra a “liberdade para desenvolver a personalidade e exprimi-la”, existe também o direito à segurança. “Portanto, há uma colisão entre vários bens, interesses ou valores constitucionalmente ancorados. E essa colisão só pode ser resolvida em primeira linha pelo legislador.”No que diz respeito à iniciativa que pretende proibir o uso de burca ou niqab, “se não existe uma finalidade de segurança pública séria a ser garantida através dessa restrição à liberdade”, “ela tem uma base constitucional muito frágil e, porventura, chumbará numa apreciação de constitucionalidade”, garante o professor.Com um olhar interno sobre o projeto de lei do Chega, o candidato autárquico pelo partido à Câmara da Amadora, Rui Paulo Sousa , diz ao DN que aquele município não é seguro, para além de considerar que até “parece outro país”, “onde todo o comércio tradicional que existia deixou de existir”, uma situação que é penalizada também, argumenta, pela comunidade islâmica.“Basta dizer que uma jovem que vai normalmente vestida, para os nossos costumes, que vai por aquelas ruas ali junto à estação [da Amadora], é assediada de uma forma bastante agressiva por elementos dessas comunidades, que se encontram sempre a passear por lá a qualquer hora do dia. Isto são factos concretos”, assegura.Questionado sobre a justificação que as mulheres muçulmanas dão para usar os véus, alegando que é uma forma de respeitar os princípios do Alcorão, aludindo a trajes modestos e que não são tentadores para os homens, Rui Paulo Sousa diz que “é uma das afirmações mais machistas” que ouviu nos últimos tempos, para além de considerar que “é uma falta de respeito pela própria mulher”.Perante a situação que descreve, o atual deputado do Chega, caso seja eleito presidente da autarquia, promete implementar um “código de contuda”, que, depois de aprovado pela Assembleia Municipal, “vai proibir andar com o rosto tapado” no concelho.Em relação aos homens da comunidade islâmica e às mulheres que não usam véu, Rui Paulo Sousa deixa um aviso: “Se eles não gostam de ver, têm bom remédio. Ou ficam em casa, ou vão-se embora, voltam para o país deles.”E promete que “nunca na vida” vai admitir “qualquer restrição, seja de que forma for, às mulheres portuguesas, em função de qualquer tipo de religião”.O DN conversou com o vice-presidente da Comunidade Islâmica de Lisboa, Abdul Razac Seco, que, sobre as roupas das mulheres, defende “que a modéstia deverá ser encarada de forma equilibrada e não imposta”, até porque esta qualidade, no Islão, “é vista como uma expressão de valores éticos e de dignidade, e isto não se aplica somente ao uso das roupas, mas também ao comportamento, olhar e linguagem”.Apesar de assumir a importância da modéstia nos trajes, Abdul Razac Seco sublinha que o “mais importante é que essa prática seja voluntária e respeitada no contexto das liberdades individuais”.Sobre o projeto de lei do Chega, Abdul Razac Seco diz estar preocupado, porque “se a proposta estivesse centrada exclusivamente em questões de segurança, como a necessidade de identificação em determinados espaços sensíveis, seria mais compreensível e, em alguns contextos, até legítimo. No entanto, o discurso que a acompanha vai além disso: invoca argumentos religiosos e associa automaticamente o uso do niqab ou da burca à opressão, o que revela uma visão redutora e preconceituosa”, considera.O representante da comunidade islâmica lembra ainda que “muitas mulheres que usam o niqab fazem-no por convicção pessoal, como expressão da sua fé e identidade”, o que faria com que a negação desse direito “em nome de uma suposta libertação” seria “retirar-lhes autonomia”.Abdul Razac Seco admite que possa haver “casos pontuais de imposição” de uso de burca ou niqab, “tal como há, infelizmente, casos de violência doméstica ou abusos em várias esferas da nossa sociedade, mas isso não justifica tratar toda uma comunidade com desconfiança ou restringir liberdades individuais”, vinca.“Precisamos de políticas que respeitem os direitos fundamentais, promovam o diálogo e garantam segurança sem alimentar estigmas ou discriminação religiosa”, conclui.“Expressão de fé e identidade” Ao DN, Sarika Karim, muçulmana e portuguesa, alega que o uso de véu no Islão é também uma questão cultural, e não é uma opressão. “O niqab não é obrigatório para as muçulmanas. Usam-no por uma escolha consciente, como expressão da sua fé e identidade”, explica Sarika Karim, que nasceu em Lisboa, com pais moçambicanos. Usa hijab, um véu que lhe cobre o cabelo. Sócia gerente de três lares de idosos, mãe de quatro filhas, uma delas já casada, começou a usar hijab há um ano, “por iniciativa própria”, por considerar “que já estava na altura de seguir mesmo o que o Alcorão diz”. “Já cumpro com os outros pilares do Islão”, afirma, referindo-se à oração, à caridade - Sarika dá 2,5% de tudo o que ganha, garante -, ao jejum, no Ramadão, e à peregrinação a Meca, que já fez. “Faltava-me também cumprir esta parte, que é cobrir o cabelo”. “Senti necessidade de fazer, para cumprir a minha religião na íntegra.”Sobre o que diz o Alcorão, Sarika insiste que as mulheres devem “usar roupa de forma modesta”. “Temos de proteger-nos para não causarmos o olhar do homem que seja com más intenções. Tudo o que está escrito para a mulher é em sua defesa e não como algo de opressão, como os media e como as sociedades fazem crer. Quando usamos quer o hijab, quer o niqab, é por escolha própria”, assegura.“Proibir o direito que uma pessoa tem sobre a sua identidade, sobre a sua fé, é colocar-nos numa posição de exclusão”, adverte, acrescentando que, caso a lei avance no sentido de proibir estes trajes culturais, “vai gerar medo, insegurança e marginalização”. No que diz respeito ao uso de niqab ou burca “não há expressão suficiente em Portugal para que exista esta lei”, afirma.Lembrando que “o Islão é paz”, Sarika acusa o partido liderado por André Ventura de estar “a usar o medo, a ignorância, para ganhar votos, para atacar uma minoria que já enfrenta alguma discriminação”.Também Nurjaha Tarmahomed, portuguesa nascida em Moçambique e a residir em Portugal desde 1975, vê o uso de véus como uma questão cultural. Nurja, como pediu para ser chamada, é muçulmana, mas escolheu não usar véu, exceto quando visita familiares na Arábia Saudita, por exemplo. E, nesse caso, tapa apenas o cabelo. Sobre as mulheres que em Portugal escolhem usar as várias formas de véu, explica que “elas vêm de uma cultura diferente. E é muito difícil a pessoa tirar de repente. Depois, naturalmente, poderão tirar ou não”, até porque também é uma questão de reconhecimento na comunidade, explica. Sobre este aspeto, diz que nunca sentiu “necessidade de pôr uma bandeira a dizer que” é muçulmana Nurja é fundadora e presidente de uma instituição particular de solidariedade social (IPSS) chamada Nur’Fatima, que, entre outras funções, distribui comida a pessoas em situação de sem-abrigo.Num momento de desabafo, Nurja conta um episódio em que mulheres com burcas lhe pediram para fazer voluntariado através da IPSS. “Eu pensei que, se eu não der essa oportunidade, ninguém mais dá, porque não sabem quem está por trás da burca. E eu sei, conheço-as. E elas vieram fazer distribuição alimentar na rua.”Nesse momento, conta Nurja, “houve uma reação” por parte de alguém em situação de sem-abrigo. A palavra “talibã” foi dita e Nurja teve de repreender a pessoa: “É má essa vossa reação, porque são elas que trouxeram hoje a comida. A comida foi feita toda por essas senhoras”, contou.Questão de liberdadeFilha de pai agnóstico e de mãe evangélica, Aisha, o nome de Ana Cristina Rocha depois de se ter convertido ao Islão, mostra a dedicação que uma mulher muçulmana pode ter à fé. Usa niqab há cerca de nove anos.Tem 42 anos, é licenciada em Psicologia, mas trabalha em estatística, numa universidade. Não é casada e cobre o rosto porque, explica, “o Islão tem éticas para tudo. Para comer, para se dar com as pessoas, com os vizinhos”, e nunca é uma ética para “conflitos”.“Não é estarmos a instigar uns contra os outros. Não é para que, cada vez que ando nos transportes ou que vou a algum lado, as pessoas olhem para mim como se eu fosse uma criminosa”, frisa, enquanto demonstra incómodo perante alguns momentos que já viveu.Escolheu o Islão porque “acreditava em Deus, mas não tinha uma religião específica”, tendo em conta o contexto dos pais.“Sempre tive liberdade para escolher. Os meus pais deram-me liberdade, porque vivo num país democrático, com liberdade de escolha”, defende, recordando que é neta de um “homem que foi preso político, que esteve preso com o doutor Mário Soares e com o doutor Álvaro Cunhal, em Peniche, que lutou pela liberdade deste país, para que possamos ser livres e escolher, inclusivamente, a nossa religião”.Sobre a sua opção de usar niqab, Aisha explica que não o usa “em determinados sítios públicos. Se for à polícia, se for perante as autoridades, no aeroporto.”No entanto, usa sempre hijab, a ocultar o cabelo.“As nossas vestimentas procuram a modéstia da mulher. Nós temos que perceber a religião para poder fazer julgamentos. Quando nos tapamos, fazêmo-lo por modéstia, para que a mulher, quando sai à rua não chame a atenção do sexo oposto. Isso está dentro da nossa religião e eu enquadro-me perfeitamente, porque, assim como há mulheres que gostam de se expor, e nós não somos contra, nem fazemos fake news, nem fazemos slogans contra quem se destapa ou quem tenha determinadas atitudes, também não é justo que eu no meu país seja discriminada ou estigmatizada porque me quero tapar. Eu tenho o direito de me cobrir”, defende.Em relação aos argumentos expostos no projeto de lei do Chega, Aisha alerta para o oposto do que o partido diz, esgrimindo a liberdade e não a opressão. “Eu não tenho que me expor, eu não sou obrigada a vestir o que as pessoas querem, o que o Chega quer. Eu não sou obrigada a vestir o que o homem quer”, destaca, com uma pergunta retórica: “Assim como há mulheres que têm a liberdade de interromper a gravidez, como há homens que casam com homens e mulheres com mulheres, e essa liberdade existe no meu país, por que não posso ter a liberdade de usar uma abaya [vestido modesto que cobre o corpo], de usar um lenço e tapar a cara em determinadas situações?”.Islamofobia. “Temos é de esclarecer, criar pontes, eliminar este veneno”, diz investigador.Merkel reforça segurança na Alemanha, mas não cede nas burcas.Os "retratos da liberdade" das mulheres que tiram as burcas ao escapar do Estado Islâmico