Programa do governo vai do inédito ao demasiado vago, mas está bem estruturado
O programa do Governo foi discutido no plenário da Assembleia da República no final da semana passada e durante dois dias. Mas o que ficou o cidadão a saber concretamente sobre o que se irá passar em cada um dos 16 ministérios do XXIII Governo da República Portuguesa? Foram referidas prioridades, medidas, muitas repetidas de programas anteriores, e sem qualquer avaliação dos resultados obtidos. E o tempo de discussão foi marcado pela "guerrilha partidária". Quem perde? O cidadão.
O professor jubilado em Saúde Pública, ex-diretor-geral da Saúde e ex-diretor da Escola Nacional de Saúde Pública, Constantino Sakellarides, a quem o DN pediu que analisasse o programa da Saúde, defende que tal deve ser feito, argumentando mesmo: "Não se explicar convenientemente os programas dos governos e até os orçamentos do Estado à população são duas oportunidades perdidas para se aumentar a literacia em políticas públicas, que uma democracia adulta requer".
Em relação ao programa em discussão, o ex-diretor geral da Saúde, e elemento ativo nas discussões sobre a reforma dos cuidados de saúde e do Serviço Nacional de Saúde (SNS), diz que "tem uma estrutura bem conseguida", "espelha o que são os atuais desafios da saúde", tem "pontos inovadores", algumas insuficiências e falta-lhe um certo sentido de "urgência" no discurso. "Não estamos numa fase em que é para se ir fazendo, isso era há 20 ou há dez anos. Agora, é preciso fazer já", mas diz ter esperança no que aí vem. "Encontro um sinal de esperança num facto que me parece muito importante e que tem a ver, não tanto com o programa do governo, mas com a própria reorganização do governo", referindo-se à entrada de uma secretária de Estado com experiência na área da modernização do Estado para a Saúde e ao reforço do ministério da Presidência com o planeamento e a gestão do Programa de Recuperação e Resiliência. Uma configuração que diz parecer "ser um sinal de que existe uma intenção de levar a sério a modernização do Estado na área da saúde e a necessidade de se caminhar significativamente para um Estado inteligente", porque até agora "o SNS tem sido uma repartição de um Estado marreta". E não pode, "tem de ser a joia da Coroa desse Estado inteligente".
Para Constantino Sakellarides, quando se fala no programa de um Governo, o primeiro ponto a debater é exatamente este. Até porque, "há um significado formal, que faz parte da liturgia política, e um real, que tem a ver com a importância que a população lhe dá, se o lê ou não e como o considera ou desconsidera". E, a verdade, é que "há uma distância considerável entre a importância formal e a real, e isso deve-se a um conjunto de circunstâncias", sublinha o professor. A primeiras destas circunstâncias tem a ver com o facto de, "habitualmente, os programas terem uma longa lista de medidas, que não são muito legíveis, é quase como se fosse uma lista de compras, pouco interessante à leitura", depois "os programas tendem a ser repetitivos. São muito parecidos de um ciclo de governação para os seguintes. E as pessoas cansam-se de ler as mesmas coisas". Por outro lado, salienta, "nunca são monitorizados ou avaliados publicamente".
Como diz, neste momento estamos a discutir "um novo programa do governo, mas já tivemos outro em 2019 e outro em 2015. Qual foi a avaliação que se fez desses programas? O que resultou, o que funcionou bem ou mal? É uma avaliação desconhecida. Ou melhor, esta avaliação acaba por ser substituída pela guerrilha partidária", quando deveria ser o próprio governo em exercício a monitorizar periodicamente o seu programa e a Assembleia da República a ouvi-lo para se fazer um ponto de situação do que se progrediu. "Isto seria uma tarefa construtiva para a sociedade civil, porque de outra forma o que é feito são alguns fogachos críticos", argumenta.
Sakellarides diz mesmo que esta questão deveria ser entendida como "uma questão de fundo" para que todos "os atores políticos, começando pelo Governo, assumam a elaboração do programa e a sua implementação muito mais seriamente". Explicando que, em termos técnicos, executar um programa significa "monitorizar, avaliar e melhorar". Ao mesmo tempo, "um novo ciclo de governação e a apresentação de um programa deve suscitar uma atitude positiva, a análise deve ser construtiva, é como reacender a esperança de que as coisas vão acontecer melhor, vamos encontrar novas soluções para o futuro", sublinha.
Posto isto. Constantino Sakellarides considera que este programa do Governo de maioria absoluta de António Costa "tem uma estrutura bem conseguida" e "espelha o que são os problemas que o sistema de saúde enfrenta", começando por dois temas críticos que diz serem os desafios que temos agora: a promoção da saúde e o acesso aos cuidados de saúde. Seguem-se aspetos mais setoriais - cuidados primários, hospitais, cuidados continuados e saúde mental - depois uma secção dedicada às profissões de saúde e termina com os aspetos associados à participação pública e à governação na saúde. "Isto é muito relevante. Não se trata de saber só o que fazer. Como fazer é igualmente importante, e isso tem a ver com a evolução do nosso modelo de governação. É indispensável articular convenientemente entre si a listagem de medidas enumeradas, para que elas de facto aconteçam. E duas ideias dominam o capítulo da governação. A primeira é o da direção executiva para o SNS, que me parece útil, mas que precisa de ser mais bem explicada. A segunda é a dos Sistemas Locais de Saúde, igualmente positiva, desde que sirva de facto para aproximar e articular os vários atores sociais de proximidade, para além das estruturas da administração pública, como por vezes se pretende".
No programa do XXIII Governo, o professor catedrático jubilado em Saúde Pública pela Universidade Nova de Lisboa refere haver três aspetos específicos, que considera muito importantes, na perspetiva de um novo modelo de governação, mas que estão "muito pouco desenvolvidos". O primeiro é "o processo clínico eletrónico único, que é uma ideia que tem 15 anos e um instrumento reconhecidamente importantíssimo, mas que, inexplicavelmente, tarda a sua implementação", aponta.
"O facto de ter passado de programa para programa fez com que esta ideia tenha envelhecido, sem se concretizar. E hoje já não interessa só a informação clínica para o profissional de saúde ou esta estar organizada só no sistema do SNS. Interessa também a informação, incluindo informação não clínica, que as pessoas têm de ter para elas próprias configurarem o seu plano de cuidados". E explica: "Como cidadão quero ter a minha informação de saúde organizada, quero geri-la, partilhá-la e discuti-la com o meu médico, porque sou eu que tomo as decisões mais importantes". Por isto mesmo, Sakellarides defende que, "o processo clínico deve hoje ser tratado no âmbito mais amplo de um sistema de informação centrado nas pessoas".
A melhoria do acesso é também uma das prioridades do programa deste governo, mas a lei que garante o acesso aos cuidados de saúde no SNS, em vigor há 15 anos, está longe de ser executada na sua plenitude. Neste sentido, o professor, que assume ter participado na discussão da lei que determina a garantia dos cuidados, considera que este é um dos pontos que o programa deveria ter aprofundado mais. Até porque se sabe que "a lei não é cumprida, mas não temos informação concreta sobre como e porque é que esse cumprimento não é feito".
Segundo explica, "a lei de 2007 não é uma lei sobre metas na gestão do acesso, mas uma lei de garantia do acesso. E essa é uma grande diferença. A letra e o espírito da lei é a de um contrato de garantias para o cidadão. Ano após anos o SNS compromete-se a melhorar os tempos máximos de espera ao acesso aos cuidados de saúde e afixa anualmente esses novos compromissos para que, nós, utentes, o possamos avaliar e ver o seu cumprimento", explicando: "Se vou a uma consulta na minha Unidade de Saúde Familiar e depois preciso de fazer uma colonoscopia ou outro tipo de intervenção hospitalar, na lei deveria estar definido, anualmente, o tempo máximo que posso esperar. Se a minha USF e o hospital de referência no SNS, não conseguirem cumprir esse tempo têm de providenciar uma solução para que tenha uma resposta dentro do tempo estabelecido. Mas nada disso acontece. Por isso, não basta repetir, mais uma vez, que precisamos de um sistema de informação sobre o acesso. Precisamos de muito mais".
Do ponto de vista dos profissionais, Constantino Sakellarides salienta o capítulo dedicado às profissões, considerando que é de "importância fundamental" por se tratar de "uma matéria complexa de dificuldade crescente, para o nosso país e para muitos outros". E, neste sentido, "requer respostas sofisticadas, que atendam às expectativas dos profissionais na atualidade e às múltiplas dimensões daquilo que constituem condições de trabalho atraentes no SNS", referindo: "A dedicação plena, por aquilo que se entende do programa, é uma resposta manifestamente curta para a importância e magnitude do problema em causa".
E justifica: "É verdade que todos os anos entram novos profissionais no SNS, mas, por outra porta, saem, em número cada vez mais preocupante, os profissionais mais qualificados do SNS. Isto acontece há mais de uma década e sem uma resposta minimamente eficaz e visível. É uma matéria que precisa de um outro desenvolvimento, com caráter de urgência", porque "se estas saídas não forem estancadas, a breve trecho, não teremos SNS que se veja", defendendo mesmo que são "precisas medidas vigorosas e a curto prazo para que este seja, de facto, um momento de viragem na governação da saúde".
Se tal não acontecer, acredita que "esta legislatura será julgada por isso". Nesta secção critica ainda a sua lógica de construção, já que enumera um conjunto de medidas de importância para o futuro do SNS, como a da "dedicação plena", para acabar noutra medida de calibre muito desigual, a "promoção das creches para os filhos dos profissionais", a qual, diz, "sem desmerecer da sua utilidade, deixa a impressão de coisas feitas um pouco a eito."
Mas para haver um novo modelo de governação na Saúde, Constantino Sakellarides defende que "o SNS tem de deixar de ser a repartição de um estado marreta para se tornar na joia da coroa de um estado inteligente". Na sua opinião, o SNS não só é uma repartição de um estado marreta, como de "um estado altamente insuficiente e incapaz de gerir assuntos tão delicados como os da Saúde", defendendo, por isto que "o SNS tem de deixar de ser a repartição de um Estado marreta para se tornar na joia da coroa de um Estado inteligente".
E, na sua opinião, a resposta aos desafios da saúde na atualidade são: os sistemas de informação dos nossos dias, a centralidade do cidadão no sistema de saúde, a questão de bom acesso aos cuidados e a capacidade de atrair e reter profissionais no SNS. Necessidades que, diz, "convergem num ponto focal - a qualidade do Estado na Saúde", argumentando: "É vital passar de um Estado centralista, normativo e rígido, para um outro descentralizado, flexível, adaptativo e inovador, capaz de responder a desafios tão delicados e complexos como aqueles que a Saúde contempla todos os dias. Isto, há muito que deixou de ser retórica. É hoje uma necessidade premente."
1 - "A Saúde começa em casa" - Promover a saúde e prevenir a doença é uma aposta essencial do programa do Governo, "porque as políticas de Saúde não se esgotam nos cuidados de saúde.
2 - "Ter direito à Saúde é ter acesso" - O Governo propõe estimular a utilização do Centro de Contacto SNS 24 como porta de entrada e referenciação no SNS; Reforçar o agendamento com hora marcada para a atividade programada de todas as instituições e serviços públicos de saúde; Generalizar mecanismos de agendamento online de consultas no âmbito dos cuidados de saúde primários; Fomentar a utilização da telessaúde como resposta de proximidade às necessidades dos cidadãos e criar um Centro Nacional de Telemedicina e uma rede nacional de telemedicina; Expandir os Balcões de Saúde do Cidadão a mais freguesias, entre outras medidas
3 -"Saúde de proximidade" - Melhorar a cobertura dos cuidados de saúde primários com mais respostas com mais unidades de saúde familiar, com meios complementares de diagnóstico, respostas de saúde oral e visual, nutrição e saúde mental. Garantir a visitação domiciliária pelos cuidados de saúde primários dos residentes em estruturas para idosos; Desenvolver e expandir novos modelos de prestação de cuidados de saúde de proximidade, nomeadamente garantindo 30 novas unidades de saúde móveis nas regiões do interior e de baixa densidade; Construir ou modernizar, até 2026, 100 unidades de cuidados de saúde primários.
4 -"Rede hospitalar" - Rever as redes de referenciação hospitalar, planeando a sua resposta em termos de volume de serviços, recursos humanos e infraestruturas e rever o modelo de organização e funcionamento dos serviços de urgência; Desenvolver a hospitalização domiciliária, expandindo a escala e as patologias mediante o reforço de equipas; Rever o funcionamento das Equipas de Gestão de Altas, de modo a garantir o alinhamento da alta clínica e social e uma transição segura entre níveis de cuidados; Aumentar a eficiência da resposta hospitalar no SNS, através da dinamização da organização interna dos hospitais em Centros de Responsabilidade Integrados; Construir as novas unidades hospitalares Central do Alentejo, Lisboa Oriental, Seixal, Sintra, Central do Algarve e a maternidade de Coimbra.
5 -"Não há boa Saúde sem Saúde Mental" - Desinstitucionalizar os doentes residentes em hospitais psiquiátricos e em entidades das ordens religiosas para respostas residenciais na comunidade; Alargar a Rede Nacional de Cuidados Continuados Integrados na área da Saúde Mental, com aumento progressivo da cobertura nacional e do número de lugares; Qualificar os internamentos de psiquiatria forense e construir unidades forenses de transição para a comunidade; Implementar os Planos Regionais de Saúde para as Demências, promovendo uma sólida resposta intersetorial às pessoas que vivem com demência, às sua famílias e cuidadores.
6 - "Satisfação dos profissionais de saúde" - Prosseguir o reforço do número de trabalhadores no SNS; • Implementar o regime de trabalho em dedicação plena, como previsto no projeto de Estatuto do SNS, de aplicação progressiva, a iniciar pelos trabalhadores médicos numa base voluntária e de compromisso assistencial, com negociação sindical do acréscimo do período normal de trabalho semanal em vigor, do acréscimo remuneratório e do regime de incompatibilidades; Rever os incentivos pecuniários e não pecuniários para a atração e fixação de médicos em zonas carenciadas; Criar e implementar medidas que visam substituir o recurso a empresas de trabalho temporário e de subcontratação de profissionais de saúde, numa aposta clara nas carreiras profissionais e na organização e estabilidade das equipas com vínculo aos próprios estabelecimentos de saúde; Valorizar as carreiras dos enfermeiros, designadamente através da reposição dos pontos perdidos aquando da entrada na nova carreira de enfermagem; Criar a carreira de técnico auxiliar de saúde; Promover a integração de médicos dentistas no SNS e recrutar os profissionais em número adequado aos gabinetes de saúde oral dos cuidados de saúde primários; Desenvolver o conteúdo funcional específico do secretariado clínico; Reforçar os serviços de saúde ocupacional das unidades do SNS; Continuar a implementar o Plano de Ação para a Prevenção da Violência no Setor da Saúde, em especial no que se refere ao apoio integral às vítimas dos episódios de violência e às ações preventivas e de promoção de uma cultura de segurança. Estimular a oferta de serviços de creche para os filhos dos profissionais de saúde.
7 -"Participação pública e governação do SNS" - Criar a direção executiva do SNS e instalar os Sistemas Locais de Saúde. Estimular uma maior participação dos cidadãos na melhoria contínua dos serviços de saúde, através da designação de um representante das associações de utentes no conselho da comunidade dos ACES e no conselho consultivo dos Hospitais e Unidades Locais de Saúde; Implementar sistemas de avaliação sistemática e periódica nos estabelecimentos e serviços do SNS, que incluam a realização de inquéritos de satisfação aos beneficiários ou utentes.