Portugueses têm saúde abaixo da média da OCDE e confiam menos no sistema de Saúde
É a primeira vez que uma organização internacional dá voz aos cidadãos de vários países para dizerem o que pensam sobre a sua própria saúde, sobre como são tratados e acolhidos nos serviços públicos do seu país e o que os leva a confiar ou não nestes.
O trabalho foi levado a cabo pela Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Económico (OCDE) em 19 países (Austrália, Bégica, Canadá, República Checa, Françae, Grécia, Islândia, Itália, Luxemburgo, Países Baixos, Noruega, Portugal, Roménia, Arábia Saudita, Eslovénia, Espanha, Suíça, Reino Unido País de Gales) e Estados Unidos da América), entre 2021 e 2023, através da audição de mais de 100 mil utentes, dos quais cerca de 12 mil portugueses (11744) tratados em 91 centros de saúde.
Os resultados finais são hoje divulgados mundialmente através de um evento na Fundação Oriente, em Lisboa, organizado em conjunto com a Direção-Geral da Saúde. Sobre Portugal há um alerta claro no relatório: Portugal é dos países em que oito em cada dez pessoas tem, pelo menos, uma doença crónica e é “urgente adaptar o sistema às necessidades da população com várias doenças”.
Um alerta que a OCDE e o próprio subdiretor-geral da Saúde, André Peralta, esperam que funcione como uma oportunidade para resolver algumas situações. Mas o objetivo final deste inquérito, designado como “Patient Reported Indicators Surveys (PaRIS)”, mais do que ser um alerta é ser "um apelo” para os países participantes, para que coloquem “no centro das discussões e das tomadas de decisões as necessidades, preferências e expectativas dos doentes”.
Se não o fizerem, tal irá continuar a refletir-se na qualidade dos cuidados prestados, e quanto mais obstáculos existirem, menos confiança o utente terá nos serviços – sendo a confiança um dos principais indicadores de avaliação de qualidade dos cuidados. E, neste item, como refere ao DN o subdiretor-geral, os portugueses deixaram uma mensagem muito clara: “Não estão satisfeitos com a organização e articulação dos cuidados”.
Apesar de mais de metadedos inquiridos em Portugal terem referido ter confiança no sistema público, 54%, este valor está abaixo da média registada nos 19 países da OCDE participantes, que foi de 62%. E a OCDE alerta: “A confiança, tal como outro aspecto essencial da infra-estrutura do sistema de saúde, necessita de investimento, de ser construída e mantida”. Mais. “Os sistemas de saúde e os decisores políticos desempenham um papel crucial na promoção da confiança entre os indivíduos com condições de saúde crónicas, garantindo uma comunicação transparente e cuidados acessíveis e centrados no doente”, lê-se no relatório.
Para André Peralta, este é, à partida, “um dos desafios identificados para Portugal”, sublinhando, no entanto, que, “embora a comparação com outros países evidencie desafios significativos, sobretudo na coordenação de cuidados, os valores absolutos de vários indicadores são positivos”, apesar de estarem abaixo dos níveis médios de saúde alcançados pelo conjunto dos 19 países da OCDE.
Níveis de Saúde abaixo da média de 19 países da OCDE
Segundo os dados do PaRIS, mais de metade dos inquiridos (57%), apesar de terem patologias crónicas, relatam ter boa saúde física, quando avaliados na função física, dor e fadiga, mas este valor acaba por estar abaixo da média da OCDE, que é de 70%, 25 pontos percentuais abaixo do país com melhor desempenho, que registou 82%.
O mesmo acontece, por exemplo, em relação à Saúde Mental, que 67% dos inquiridos consideram ter “boa saúde mental” quando se referem à qualidade de vida, sofrimento emocional e saúde social, mas este é o valor mais baixo registado no inquérito, uma diferença de 26 pontos percentuais do país com melhor desempenho, que registou 93%.
No que toca ao bem-estar em saúde, este foi reportado como positivo por 61% dos inquiridos, mas a média da OCDE é de 71%. Só 42% é que consideraram ter uma saúde geral boa, muito abaixo da média da OCDE que foi de 66%.
É de salientar que estes resultados têm por base a experiência de mais de 100 mil utentes de 19 países da OCDE com mais de 45 anos, incluindo as que vivem com doenças crónicas, como hipertensão, artrite, diabetes, doença cardíaca e cancro.
Tratamento da doença crónica tem nota positiva
Mas nem tudo é negativo relativamente à realidade portuguesa. O relatório destaca, por exemplo, o tratamento dado às doenças crónicas como muito positivo, apesar do número de doentes com uma ou mais doenças crónicas estar acima da média da OCDE.
O subdiretor-geral da Saúde destaca mesmo que foi neste item que o país registou o valor mais elevado em relação à média da OCDE, fazendo-nos perceber que, afinal, “a doença crónica em Portugal não é necessariamente uma sentença”.
E argumenta: “Há pessoas que têm doenças crónicas que conseguem manter um bom funcionamento social e uma boa satisfação da sua vida”, afirma, explicando que “8 em cada 10 pessoas que têm só uma doença crónica mantém um bom funcionamento social. Só à medida que envelhecemos e que as doenças crónicas se acumulam é que o impacto começa a ser mais significativo na qualidade de vida do utente. Para pessoas que têm 3 ou mais doenças crónicas, o funcionamento social e a qualidade de vida mantém-se para 6 em cada dez, descendo um pouco”.
Segundo o relatório, 97% dos utentes portugueses com doenças crónicas referiram beneficiarem de uma abordagem multidisciplinar, não exclusivamente médica, mas também de enfermagem e de outros profissionais de saúde, o que é 14 pontos percentuais acima da média da OCDE dos 19 países, 83%.
O documento indica ainda que 86% das unidades portuguesas ofereceram consultas de seguimento com mais de 15 minutos, o que é quase 40 pontos percentuais acima da média registada pelos países participantes no PaRIS, 47%. Por outro lado, 71% dos utentes em Portugal com três ou mais condições crónicas tiveram também a sua medicação revista nos últimos 12 meses, abaixo da média do PaRIS, que é de 75%, mas mais próximo.
Prevenção da doença é desafio para Portugal
No entanto, André Peralta considera que mesmo neste item há desafios que Portugal tem de ultrapassar, nomeadamente no que concerne à eliminação da doença crónica, numa maior aposta na prevenção. O sub-diretor-geral sublinha os indicadores que o PaRIS nos deixa: “Oito em cada dez utilizadores dos cuidados primários têm uma doença crónica, mais de metade vive com duas doenças crónicas e um quarto dos inquiridos tem três ou mais doenças crónicas”. Por isso mesmo, defende, que “é preciso prevenir a doença crónica e se esta se instalar temos de conseguir ter cuidados de saúde que permitam a estes doentes manter qualidade de vida e um bom funcionamento social”.
O relatório evidencia ainda que “as mulheres tendem a viver mais tempo do que os homens, mas relatam consistentemente uma pior saúde”. De todas as pessoas com doenças crónicas, 74% dos homens têm uma boa saúde física, em comparação com 65% das mulheres, e 86% dos homens têm uma boa saúde mental, em comparação com 81% das mulheres.
Outro item positivo para Portugal é a digitalização dos serviços de saúde. O relatório indica que 80% dos utentes são geridos em unidades com capacidade de troca eletrónica de registos médicos, muito acima da média OCDE de 57%, o que “demonstra o potencial da infraestrutura digital em saúde como ferramenta de promoção dos cuidados centrados nas pessoas”.
SNS falha na organização e articulação dos cuidados
Mas onde o país mais falha, segundo as conclusões do PaRIS, é na organização dos serviços e na articulação dos cuidados entre unidades de cuidados primários e hospitalares.
O sub-diretor-geral da Saúde assume ao DN que a articulação dos cuidados é mesmo “um dos desafios identificados para o futuro em Portugal”, já que neste item só 49% considera que esta articulação funciona, contra 59% registado pela média da OCDE.
Aliás, segundo André Peralta, os portugueses deram “uma mensagem muito clara neste estudo”. Ou seja, que “conseguem viver bem com uma doença crónica, se tiverem mais do que uma já não conseguem viver tão bem, mas, acima de tudo, estão descontentes com a coordenação e articulação dos cuidados. E penso que isto nos deve fazer a todos refletir sobre estes aspectos fundamentais”, argumentando:“A falta de coordenação e de articulação entre cuidados pode levar a experiências negativas do utente, como atrasos no acesso aos cuidados, e isso afetar negativamente a sua confiança no sistema”.
Para o dirigente da autoridade máxima da Saúde em Portugal, o alerta e o desafio lançados pela OCDE devem constituir “uma oportunidade para o país resolver esta questão”.
Por exemplo, “seria importante pensar-se num plano de cuidados único para o utente com articulação entre hospital e centro de saúde”, mas para isto “é preciso um investimento concreto para que a organização entre os diversos níveis de cuidados, primários, hospitalares, e continuados, pudessem coexistir em harmonia e que não fosse tão difícil ao utente navegar entre eles”.
No entanto, André Peralta ressalva que para o item da satisfação ou confiança há outros factores sócio-económicos que contribuem para os resultados alcançados e que, no caso de Portugal, é de destacar que “64% dos utentes com rendimentos mais elevados confiam no sistema de saúde público, versus 70% da média na OCDE, enquanto apenas 48% das pessoas com rendimentos mais baixos expressam essa confiança, versus 59% da média na OCDE. Segundo refere o relatório, “esta diferença entre grupos de rendimento é uma das maiores entre os países”.
O sub-diretor-geral diz que “não se sabe exatamente o porquê desta diferença. O que podemos pensar é que têm mais recursos para fazer valer os seus direitos e mais hipóteses de terem acesso por outras vias aos cuidados, até pela medicina privada. Mas algo que emerge deste relatório é, de facto, que a confiança é um aspecto fundamental, porque sem confiança nós não conseguimos ter bons cuidados de saúde”.
Ou melhor, “sem um país em desenvolvimento e próspero não conseguiremos alcançar bons resultados em saúde”. André Peralta faz questão de sublinhar que este “estudo internacional veio preencher uma lacuna importante nos dados do país”, mas veio acima de tudo “dar voz às pessoas diretamente afetadas pelos serviços de saúde.