Portugal vai iniciar rastreio em 100 mil bebés para identificar uma das doenças raras mais comuns
Ao fim de dois anos de procedimentos, verificação de critérios, de obras e de preparação, está tudo pronto para se começar a rastrear esta doença à nascença. O presidente do INSA confirmou ao DN que o projeto arranca até ao fim deste mês e que o objetivo é a inclusão da AME no teste do pezinho.
A doença tornou-se conhecida quando o caso da bebé Matilde saltou para as páginas dos jornais em 2019, e depois de ter sido aprovado o primeiro medicamento para tratar a Atrofia Muscular Espinhal (AME), uma doença rara genética. As páginas dos jornais traduziam a luta dos pais da bebé Matilde pelo acesso àquele que foi considerado o medicamento mais caro do mundo, e cujo custo se cifrava pelos dois milhões de euros, porque os resultados que apresentava eram excelentes. Ou melhor, o principal resultado traduzia-se na sobrevivência de quem era diagnosticado com a doença. E conseguiram.
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A bebé Matilde teve acesso ao medicamento, mas a bebé Natália também. Foram as duas primeiras doentes com AME Tipo 1, o mais grave - que até esta altura tinha um diagnóstico de sobrevida, no máximo de dois anos, embora existiam ainda o tipo 2, 3 e 4, com uma sobrevida mais elevada - a serem tratadas em Portugal, ao mesmo tempo e no serviço de neuropediatria do Centro Hospitalar Universitário Lisboa Norte.
Três anos passados, os resultados estão à vista. "Matilde e Natália estão cá, e isso é o importante", comenta ao DN o presidente da Associação Portuguesa Neuromuscular, Joaquim Brites, que tem vindo a participar nos processos de luta pelo acesso aos medicamentos, mas também pelo rastreamento neonatal. "O impacto no tratamento da doença com este primeiro medicamento e com outro que, entretanto, apareceu, é enorme", assume, dizendo: "Nunca mais morreu nenhuma criança das que podem receber o tratamento. E já temos crianças com quatro e mais anos".
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Um ano depois do aparecimento do medicamento "milagre", médicos, pais e outras entidades, nomeadamente o Instituto Nacional de Saúde Ricardo Jorge, responsável pelos rastreios neonatais de algumas doenças raras, começaram a construir um novo objetivo, precisamente o de integrarem a AME no grupo doenças rastreadas à nascença. Ao fim de dois anos, esse objetivo também está a ser cumprido.
O processo de rastreamento vai avançar já este mês, segundo confirmaram ao DN os presidentes do INSA, Fernando Almeida, e da APN, Joaquim Brites. Este último acredita mesmo que "o primeiro de 100 mil bebés pode ser já rastreado na próxima semana", mas Fernando Almeida é mais cauteloso e prefere manter que o projeto avançará até ao final do mês, mas, é um facto, "está tudo pronto".
Entusiasmado com o processo, Joaquim Brites explica que tudo "começou a ser construído há dois anos, com compilar de toda a informação científica sobre a doença para se demonstrar que é possível ser rastreada à nascença, com as obras necessárias no laboratório (INSA) para que este rastreio possa ser feito, com a distribuição de folhetos para aos profissionais e com todos os centros de rastreio devidamente informados e em articulação para se poder avançar". Portanto, sublinha, "acreditamos que na próxima semana se avançará com o caso número um dos 100 mil que integrarão o rastreio" - número determinado pela legislação que regula o rastreamento neonatal.
De acordo com a associação, a expectativa é que dentro de 16 a 17 meses o rastreio aos 100 mil bebés esteja completo, já que atualmente o número de nascimentos em Portugal é da ordem dos 80 mil - em 2021, houve pouco mais de 79 mil. O rastreio permitirá perceber a taxa de prevalência da doença no nosso país, que se estima ser de uma criança para 10 mil nascimentos, o que não é muito diferente do que se regista noutros países.
Depois dos resultados deste rastreio é que se tomará a decisão se a doença integrará o teste do pezinho, mas, até agora, e de acordo com o histórico, que já levou à integração de 27 doenças neste grupo, a última das quais a fibrose quística, é quase certo que passará integrará. O que para o presidente da APN "será uma grande vitória para as doenças neuromusculares, em particular para a AME". E explica: "Ao integrar-se a doença no rastreio neonatal vai ser possível diagnosticar precocemente todos os casos e começá-los a tratar precocemente também. A primeira implicação, quando for diagnosticado um caso de AME tipo 1, é a de que a criança começará a sentar-se, a bater palmas e a pôr se de pé mais cedo, havendo a perspetiva de comer sozinho, uma possibilidade que antes dos novos tratamentos não existia".
Portugal pode ser primeiro país a fazer rastreio nacional
A prioridade agora "é diagnosticar para se evitar o que acontecia até agora, que era as crianças chegarem aos centros hospitalares já com um ano ou mais, por serem crianças moles, sem se sentarem nem". A ciência já demonstrou que o ideal é que estas crianças comecem a ser tratadas até aos 20 dias de vida, porque "se for muito mais tarde já 80% das células neuronais estarão mortas. Com o rastreio à nascença isto é possível e, com as novas terapias, estas crianças podem vir a ter uma vida normal", explicaram ao DN.
Os dados fornecidos ao DN pela APN, indicam que, neste momento, existem em Portugal 137 pessoas com AME, das quais 29 com o tipo 1, a serem tratadas com os novos medicamentos. Todos os outros casos são do tipo 2 e 3, à exceção de 3 casos do tipo 4, que são raros, diagnosticados na fase adulta e cuja média de sobrevivência é bem mais elevada.
Mas ao avançar para este projeto de rastreio neonatal através do teste do pezinho, Portugal pode tornar-se no primeiro país europeu a avançar com um rastreamento nacional, já que outros países como a França e a Espanha, que estão a iniciar também esta fase, estão a fazê-lo de forma regional.
"A França começou na semana passada com dois projetos-piloto de rastreamento de 60 mil bebés nascidos numa região do Norte e outros 60 mil noutra região do Sul. A Espanha também está a começar por rastrear por regiões. A Áustria começou este ano com o rastreio em 30 mil bebés, portanto Portugal pode ser o primeiro país da Europa a fazer um rastreio nacional e a todos os 100 mil bebés que nascerem a partir do caso número um", explicou Joaquim Brites, sublinhando que a AME é uma doença rara genética, e que dentro destas é das mais comuns, bem como "a principal causa de morte infantil por doença genética".
Daí que se for diagnosticada e tratada cada vez mais cedo, seja possível "mudar o rumo da doença, salvar muitas vidas e dar melhor qualidade de vida aos doentes e às famílias", porque "um diagnóstico de AME é terrível. É muito difícil conviver com uma criança a prazo, que à partida tem um diagnóstico muito grave e com um limite muito curto para as expectativas de uns pais, mas agora vai ser possível alterar este percurso", sublinha.
Laboratório do INSA e centros de tratamento bem articulados
Os casos detetados de AME são tratados nos centros de neuropediatria, dos hospitais São João, Universitários de Coimbra, Santa Maria e D. Estefânia. Há muito que este projeto para o rastreamento neonatal é esperado por pais, famílias e profissionais, porque, assumem, quando se recebe um diagnóstico de AME "é muito complicado".
Mas o presidente do INSA, Fernando Almeida, explica que "a decisão de se integrar uma doença ou um diagnóstico no rastreio neonatal não é uma questão de vontade. São precisos critérios". Por exemplo, "se a doença tem impacto, se se revela logo à nascença - porque não vamos fazer um diagnóstico precoce se a patologia não se revelar nesta fase ou nos primeiros dias de vida. É também necessário que seja possível medir o marcador específico da doença e que haja, igualmente, uma relação custo benefício, este em relação ao que se pode beneficiar em termos um diagnóstico precoce para curar ou travar a doença. Ou seja, é preciso sabermos se intervirmos com muita rapidez, que o curso da doença não vai ser o mesmo do que se não houver nenhuma intervenção. Isto é fundamental".
E ainda há um outro critério fundamental "um tratamento eficaz, que seja suficientemente forte para curar ou impedir o curso da doença rapidamente em benefício do bebé e da família, e a articulação com os centros de tratamento, porque não faz sentido rastrear-se à nascença, se depois não houver unidades onde a criança possa ser tratada".
Todos estes critérios foram verificados em relação à AME. "É uma doença com uma de um para 10 mil. É grave e de revelação neonatal, existe um marcador, e a sua deteção precoce permite a evolução favorável da doença e existe tratamento eficaz e articulação com os centros de tratamento está muito bem oleada", refere Fernando Almeida. "Os profissionais estão preparados e vão ter de dedicar-se a tempo inteiro a este diagnóstico, porque se fizermos as contas aos nascimentos entre 80 mil a 100 mil isto dá uma média de 250 a 300 testes por dia".
O presidente do INSA refere ainda que se teve de esperar muito tempo pelos primeiros medicamentos para a doença, mas os que existem estão a cumprir a sua função e "há muita esperança nos que aí vêm". Mas o rastreio dos 100 mil bebés ainda é só o início do processo de inclusão no teste do pezinho.