Portugal prepara transferência de doentes dos hospitais psiquiátricos para unidades na comunidade

Há mais de 50 anos que esta mudança está a ser feita nos países ocidentais industrializados. E com resultados. A primeira a consegui-lo foi a Itália, mas em Portugal ainda não foi uma aposta ou prioridade. O diretor da Coordenação Nacional para a Saúde Mental, Miguel Xavier, diz ao DN que a medida vai ter mesmo de avançar "de forma consistente". Até porque "é uma questão de "direitos humanos".
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Em 2016, uma das recomendações para 2020, constantes no Relatório de Avaliação do Plano para a Saúde Mental, já era "a criação em todos os departamentos de saúde mental de equipas/unidades de saúde mental comunitária, devidamente habilitadas a assegurar cuidados integrados a pessoas com perturbações psiquiátricas graves".

Mas a concretização desta medida não foi possível e nem é fácil. Ao DN, o diretor da Coordenação Nacional para a área da Saúde Mental, Miguel Xavier, explica que a desinstitucionalização voltou a ficar suspensa nestes quatro anos, por causa da pandemia. "O processo teve de ser suspenso", mas tem de avançar "de forma consistente". Até porque, e como sublinha, é um processo de mudança que integra a lista dos "direitos humanos internacionais".

O que é a desinstitucionalização? Miguel Xavier define: "É um processo que consiste na transferência progressiva da prestação dos cuidados de saúde mental a pessoas com doença mental residentes em instituições dos hospitais psiquiátricos para estruturas baseadas na comunidade". Uma mudança que nasceu "há, aproximadamente, 50 anos e que foi inicialmente impulsionado pela consciencialização pública face às más condições das instituições fechadas e pela introdução dos primeiros medicamentos antipsicóticos".


Segundo o psiquiatra, ao longo destes 50 anos, a desinstitucionalização tem sido "um dos pilares de qualquer reforma psiquiátrica, encontrando-se em estadio de desenvolvimento avançado na maioria dos países ocidentais industrializados". Por exemplo, a "Itália foi o primeiro a concluir o processo, que se iniciou nos anos 70, mas diversos outros países europeus começaram o mesmo processo nos anos seguintes."


O médico, sublinha ainda, que este processo tem sido sujeito "a extensa avaliação científica, tendo os resultados obtidos demonstrado, em termos gerais, não só a viabilidade económica do processo, como, acima de tudo, ganhos em termos de autonomia do doente".

Só que em Portugal, a mudança para este estadio tem decorrido de forma muito irregular, "sendo necessário retomá-la", defendeu. "A desinstitucionalização passou a ser considerada um imperativo do ponto de vista dos direitos humanos, sendo preconizada por todas as instâncias internacionais nesta área, e faz parte dos documentos legais internacionais de direitos humanos a que Portugal está vinculado", argumentou.

De acordo com o mesmo relatório de 2016, Portugal contava nesta data com 230 camas para doentes residentes em hospitais psiquiátricos e 220 camas para doentes agudos. A estas juntavam-se mais 249 camas para residentes nos hospitais gerais e 853 para doentes agudos. Ao todo, são quase 500 camas que têm estado destinadas a doentes residentes, mas o objetivo da desinstitucionalização é, precisamente, "a transferência das pessoas institucionalizadas em regime de permanência em hospitais psiquiátricos para dispositivos alternativos na comunidade".

O objetivo a atingir no futuro é que os novos casos de patologias graves não tenham de ser admitidos em hospitais psiquiátricos, mas que já possam ser tratados em unidades comunitárias, permitindo assim uma maior integração dos doentes.


Aliás, "a meta da desinstitucionalização é que as pessoas com doença mental possam beneficiar de uma maior integração na comunidade e à fruição de uma maior autonomia pessoal, mantendo o nível de cuidados prestados", destaca Miguel Xavier, reforçando: "A relevância desta desta medida "não advém, em primeira mão, do seu impacto em termos de dimensão populacional", porque se está "a falar de um número relativamente pequeno de pessoas, da ordem de algumas centenas. A sua importância decorre, principalmente, da aplicação do primado dos direitos humanos a estes doentes". Ou seja, a desinstitucionalização "pode contribuir, e como a experiência de outros países já o demonstrou, para a concretização de vários direitos, reforçando a autonomia individual e uma integração dos doentes mais efetiva na comunidade"


Mesmo que avance agora ao lado de outras medidas que irão integrar a reforma da Saúde Mental em Portugal, o médico alerta para o facto de se tratar de um processo de mudança que "tem uma série de passos, os quais devem assentar num plano rigoroso e na previsão de mecanismos de avaliação".


Neste momento, referiu, "já foi concluído o documento estratégico, e está a ser preparado o regulamento para lançar um concurso para criação de respostas na comunidade, financiado pelo Programa de Recuperação e Resiliência (PRR), ao qual se poderão candidatar instituições de vários sectores". Por outro lado, "também está a ser desenvolvido um modelo específico de financiamento para a prestação de cuidados aos doentes desinstitucionalizados, estando prevista a criação de 100 respostas até ao final do ano".

Na conversa com o DN, o diretor da Coordenação Nacional para a Saúde Mental lembra que esta mudança deve ser uma prioridade, já que um dos grandes desafios da Saúde Mental para os próximos dez anos passa por uma mudança de mentalidades e de prioridades: se queremos evoluir, o investimento na saúde mental tem de ser considerado uma prioridade política".

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