Os termómetros marcam quase 40 graus, o sol está abrasador em Lisboa, a sétima cidade mais quente da Europa mais exposta a ondas de calor. Nas ruas da capital, profissionais da limpeza continuam a trabalhar normalmente, assim como os trabalhadores das obras e outras profissões expostas ao sol. Diferente de Espanha, que desde 2023 está a aplicar restrição de horários para evitar que trabalhadores literalmente morram de calor, em Portugal, isto ainda não é uma realidade. Este aspeto é dos muitos que mostram que o país ainda não está preparado para as ondas de calor, de acordo com especialistas ouvidos pelo DN.“As ondas de calor são algo que veio para ficar. Não é uma coisa passageira, é uma coisa que vai durar, eu diria, séculos. O que as pessoas têm de fazer é adaptar-se às alterações climáticas. Portanto, criar condições que sejam menos desfavoráveis para a questão das alterações climáticas”, começa por dizer Filipe Duarte Santos, professor catedrático jubilado da Faculdade de Ciências da Universidade de Lisboa. De acordo com o investigador, autor do livro Alterações Climáticas, está comprovado pela ciência que o corpo humano pode estar em risco nas ondas de calor. “A resistência humana às ondas de calor depende não só da temperatura, mas também da humidade, humidade relativa. A partir de certos valores, as pessoas, por exemplo, não podem trabalhar no exterior. Não é possível estar ao ar livre e, sobretudo, não se pode trabalhar porque o nosso corpo não está adaptado a essas circunstâncias de temperatura e de humidade”, argumenta. O professor catedrático defende que Portugal deve ter atenção, em especial, com os trabalhadores que estão ao ar livre neste período crítico de calor. “Trabalhar no exterior é uma coisa que é extremamente exigente para o organismo, é uma coisa que não é boa para o organismo e, portanto, é necessário que as entidades tenham isso em conta”, destaca. Ao mesmo tempo, reconhece que não é uma medida fácil do ponto de vista prático. “É algo que é difícil estar a legislar, mas de facto é um esforço muito grande para aqueles trabalhadores que têm que fazer a sua atividade ao ar livre nestes dias de temperaturas muito altas”, detalha.António Lopes, especialista em climatologia urbana, investigador e professor no Instituto de Geografia e Ordenamento do Território da Universidade de Lisboa (IGOT), diz ao DN que Portugal está atrasado no assunto. “Andamos a alertar para o calor há 20 ou 30 anos, temos estudos sobre o impacto do calor na saúde há muitos, muitos anos. O problema é que nunca houve realmente uma atenção muito grande e efetivamente o calor mata”, explica. António Lopes diz que tem tentando publicitar o tema em Portugal, uma discussão que já existe em outros países. “É uma coisa muito importante. Tenho andado também a procurar divulgar esse tema. O que é que se faz às pessoas, aos trabalhadores que estão sob índices mesmo em risco de vida, não se está só a falar aqui de desconforto”, frisa o investigador..Medida não está no anteprojeto da reforma da legislação laboralAs alterações climáticas não são novas, apesar de serem mais discutidas em épocas de forte calor e os especialistas têm vindo a alertar sobre os riscos. Na semana passada, o Governo divulgou o anteprojeto da reforma da legislação laboral, mas não abordou o assunto. Nas 59 páginas do documento não consta nenhuma menção ou medida aos trabalhadores expostos ao calor, seja em áreas externas ou mesmo internas. O Decreto-Lei n.º 243/86, denominado Regulamento Geral de Higiene e Segurança do Trabalho nos Estabelecimentos Comerciais, de Escritório e Serviços, indica que “a temperatura dos locais de trabalho deve, na medida do possível, oscilar entre 18ºC e 22ºC, salvo em determinadas condições climatéricas, em que poderá atingir os 25ºC”.O DN questionou o Ministério do Trabalho, Solidariedade e Segurança Social sobre o assunto, mas não obteve uma resposta até o fecho desta edição. Já o Bloco de Esquerda (BE) está atento ao assunto. No dia 24 de julho, a deputada única do partido, Mariana Mortágua, entregou no Parlamento um projeto de lei que estabelece “medidas de proteção dos trabalhadores expostos a temperaturas extremas”. O objetivo é colocar novas regras de proteção no Código do Trabalho.O BE propõe que, no caso de trabalhadores que atuam em áreas exteriores, “seja criada uma dispensa da prestação de trabalho quando sejam emitidos pela entidade competente, atualmente o IPMA, avisos laranjas ou vermelhos” e que “o empregador pode alterar a organização do trabalho para que, sempre que possível, as tarefas sejam realizadas no interior e/ou através da redução do horário mediante aviso prévio não inferior a 24 horas”. Outra medida é que “perante a verificação de temperaturas elevadas, o trabalhador tem direito a intervalos de descanso”, nomeadamente de “20 minutos a cada duas horas, quando se verifiquem temperaturas superiores a 33 graus” e “10 minutos a cada duas horas, quando se verifiquem temperaturas acima de 28 graus no exterior ou 30 graus em ambiente fechado”.Sistema de alertasFilipe Duarte Santos considera que outro aspeto a levar em conta neste tema são os avisos prévios à população sobre as ondas de calor. “Uma coisa que é muito importante é que as pessoas estejam avisadas da onda de calor, ou seja, que haja alertas para a aproximação de uma onda de calor, que é para as pessoas se protegerem e sobretudo as pessoas de idade, as pessoas com problemas cardiovasculares, as pessoas de idade que vivem sozinhas e, portanto, que se têm que hidratar, não convém que saiam à rua”, detalha o professor.Portugal possui o ÍCARO, um sistema de alerta para as ondas de calor, que o especialista considera “muito bom” e que precisa ser conhecido por todas as pessoas. “Tem sido muito positivo e tem sido muito bom, portanto necessário haver esta adaptação através destas alertas”, explica.Depois, destaca que é preciso também investir em refúgios climáticos e que as construções futuras, como escolas, prédios comerciais e centros de saúde tenham sistemas de ar condicionado. António Lopes concorda com a necessidade desta preparação das cidades para enfrentar o calor. Diferente de Portugal, em Barcelona, por exemplo, a cidade já está na segunda fase deste plano e, inclusive, António Lopes foi convidado para acompanhar o desenvolvimento deste projeto. “Um refúgio climático não é apenas uma sombra. É um local onde as pessoas estejam confortáveis e haja uma monitorização, que é o mais difícil de fazer”, destaca.Segundo o professor, há locais que podem ser transformados em refúgios climáticos, mas precisam de estar preparados, inclusive do ponto de vista logístico. Para isto, volta ao exemplo da capital da catalunha. “O plano de Barcelona claramente diz que quem tem patologias não pode entrar neste sistema. Tem que ser o Serviço Nacional de Saúde a garantir a saúde das pessoas nestes dias. Portanto, isto é normalmente para as pessoas que não têm patologias”, cita. Existem várias questões que precisam ser levadas em conta. “Imagina, há um centro de dia que tem à sua conta 40 idosos com 80 anos. Quem é que se responsabiliza pelas pessoas? O que é que as pessoas fazem nesses locais? Há os centros comerciais, mas os centros comerciais têm uma determinada capacidade de carga, não se pode ir lá para toda a gente. Há todo um conjunto de situações que precisam de ser pensadas”.E por fim, engana-se quem pensa que apenas os mais idosos sofrem. “A mortalidade está muito associada a mais de 65 anos, mas os jovens que não morrem obviamente porque têm uma grande capacidade de adaptação, são o segundo grupo onde mais vão parar as emergências. Achávamos que os jovens estavam sempre imunes a tudo, mas não estão”.amanda.lima@dn.pt.É possível arrefecer Lisboa? Um grupo de especialistas acredita que sim e vai propor soluções.Máximas até 40º C. 17 distritos sob aviso amarelo devido ao calor.Proteção Civil: Falta de condições de segurança impede mais meios aéreos em Arouca