O que diz a lei n.º2/2014, de 6 de agosto, que regula o segredo de Estado? “Os órgãos do Estado estão sujeitos aos princípios da transparência, da publicidade e da administração aberta.” A exceção à regra acontece quando, “pela natureza da matéria”, esta esteja classificada como “segredo de Estado”. Isto é: que seja “suscetível de pôr em risco interesses fundamentais” do país, sejam eles “relativos à independência nacional, à unidade e à integridade do Estado ou à segurança interna ou externa, à preservação das instituições constitucionais, bem como os recursos afetos à defesa e à diplomacia, à salvaguarda da população em território nacional, à preservação e segurança dos recursos económicos e energéticos estratégicos e à preservação do potencial científico nacional”.O problema? “O elemento material do Estado foi objeto de uma dilatação conceptual”, defende Ana Miguel dos Santos. No artigo científico O Segredo de Estado em Portugal: Da Opacidade do Estado Novo à Primazia da Transparência Contemporânea, publicado na revista Janus, da Universidade Autónoma, a especialista em segurança explica que, “ao aludir a ‘matérias’ para além do tradicional escopo” dos “documentos e informações”, acabou por ser dada uma “terminologia mais abstrata” ao regime do segredo de Estado, tendo a configuração constitucional do direito à informação administrativa, previsto no número 3 do artigo 268.º da Constituição, que o estipula como “direito fundamental”. Isto veio alargá-lo e tal contribui para que possa haver situações cuja classificação possa não ser uma necessidade..Hospital Militar de Belém. A pandemia não pode nem deve significar falta de rigor na gestão das contas públicas.Esta lei determinava 120 dias para alterar as regras SEGNAC, de 1987, que ainda estão em vigor. Estas normas foram estabelecidas “com fundamento” na Lei de Segurança Interna de 1987... ou seja, anterior à legislação do direito à informação administrativa, que aconteceu apenas em 1989, com a revisão constitucional. Isto faz com que “esta legislação seja mais do que ilegal. É inconstitucional”, explica Ana Miguel dos Santos, originando ao um “regime intricado” que pode desafiar o princípio da transparência administrativa, estipulado na Constituição (artigo 268.º). Segundo o artigo, todos “os cidadãos têm o direito de ser informados” sobre o “andamento dos processos em que sejam diretamente interessados”, tendo também o “direito de acesso aos arquivos e registos administrativos”, a menos que estejam em causa “matérias relativas à segurança interna e externa, à investigação criminal e à intimidade das pessoas”. Como exemplo, a ex-deputada do PSD recorda o relatório sobre as obras do Hospital Militar de Belém. Ana Miguel dos Santos (que é doutoranda em Segurança Internacional com uma tese em transparência na segurança) foi, aliás, quem desbloqueou a classificação de segurança sobre o tema.Em 2021, o então ministro da Defesa do governo do PS, João Gomes Cravinho, defendeu numa audição regimental no Parlamento que o relatório da auditoria interna às obras - que tiveram um custo quase quatro vezes superior ao cálculo inicial - devia ser confidencial. Nessa altura, Ana Miguel dos Santos era deputada do PSD criticou a classificação dada pela Inspeção-Geral de Defesa Nacional (IGDN), argumentando que, com base na lei que regula o segredo de Estado, a secretaria-geral do ministério não tem competências para classificar documentos. Além disso, argumentou na altura, a Comissão de Acesso aos Documentos Administrativos (CADA) que, em nome da transparência, defendia que o documento não devia ser sujeito ao regime de “confidencial”.“Há muita gente” com capacidade para classificar documentosEste caso levanta, então, outra pergunta: quem tem competências para decidir o que deve ou não ser sujeito ao regime de classificação?De acordo com a lei atual, têm essa competência “o Presidente da República [Marcelo Rebelo de Sousa], o presidente da Assembleia da República [José Pedro Aguiar-Branco], do primeiro-ministro [Luís Montenegro], dos vice-primeiros-ministros e dos ministros”.Há, no entanto, exceções, que são apenas aplicáveis por “razões de urgência” e a “título provisório”. Quem? Figuras como o Chefe do Estado-Maior-General das Forças Armadas, o secretário-geral do Sistema de Segurança Interna ou, ainda, os “embaixadores acreditados em posto e os chefes de missão diplomáticas e os representantes em missão conferida por entidade competente em representação de soberania”. Contudo, de acordo com as regras SEGNAC - que ainda estão em vigor -, o espetro de autorização continua muito alargado, “ainda continuando a haver diretores-gerais com essa capacidade”. “Há gente a mais a classificar documentos. É um erro. A competência para definir quem tem este direito devia da Assembleia da República, é a quem compete legislar", defende Ana Miguel dos Santos. Esta situação, classifica a especialista, “é um problema político, de inação”.Até porque há outro fator: quem fiscaliza esta classificação de documentos? A Entidade Fiscalizadora do Segredo de Estado (EFSE), definida como “independente”, com funcionamento “junto da Assembleia da República”. Além de fiscalizar o cumprimento do regime, aprecia e pronuncia-se sobre “requerimentos e queixas apresentados por cidadãos em matéria deste segredo”.De acordo com a lei, toda a matéria sob segredo de Estado deve ser comunicada ao Parlamento. No entanto, o antigo presidente da EFSE, Torres Sobral, disse que a entidade “só tinha” duas queixas. “Isto mostra que, além de haver muita gente a poder classificar estas matérias, é também ilustrativo de que não se está a comunicar conforme devia ser feito”, explica Ana Miguel dos Santos.