Às vezes fico tão zangado e com tanta raiva que até me dá dor de cabeça. Ela costumava deixar-me tão furioso... porque ela lutava contra tudo o que eu dizia. Mas mesmo quando ela não dizia nada, enraivecia-me. Ela tinha de questionar tudo... por que não podia simplesmente fazer o que eu dizia?”Este é um excerto de uma das 30 entrevistas a agressores condenados pelo crime de violência doméstica, feitas no âmbito do um trabalho de campo com frequentadores dos programas PAVD, assinado pela investigadora Dalila Cerejo, tendo em vista a análise de Indicadores de Expressão Emocional associados à vergonha e à raiva através de manifestações fisiológicas, corporais e paralinguísticas.Raiva. É uma das emoções mais verbalizadas pelos agressores. A par da vergonha, igualmente potenciadora do uso da violência. Evidenciada a dado momento da mesma entrevista: “Há uma parte em que ela... parece que se esquece de mim; desliga-se, e é isso que me acontece por vezes... depois, eu tinha essas ideias e começava a puxar e a agarrá-la, e depois havia discussões…”“Entrevistadora - Sentiu-se negligenciado, é isso?Entrevistado - Envergonhado, sobretudo... talvez ela não se importasse comigo, e isso fez-me ficar mais pequeno. Senti-me muito envergonhado.”O estudo, que teve por principal objetivo analisar a experiência emocional, os modelos e os valores de género em vítimas e agressores de violência no contexto da intimidade, com o propósito de identificar se a expressão de determinadas emoções, associadas ao masculino e ao feminino, potenciam e normalizam o uso da violência, partiu desta hipótese: a demonstração de estados emocionais mais agressivos pode potenciar a passividade nas mulheres vítimas, ao mesmo tempo que, numa perspetiva dialética, a passividade das mulheres vítimas poderá facilitar o recurso à violência por parte do agressor. .Violência doméstica. Programas para agressores atingiram em 2024 o número mais alto de frequentadores. Ao longo das entrevistas no âmbito deste estudo, os indicadores de expressão das vítimas foram claros: cabeça baixa, mão a tapar a cara ou a boca, olhos prolongadamente fechados, desvio do olhar, mãos escondidas no colo, choro, suspiros.Do outro lado, os agressores: distanciamento face à entrevistadora, dentes e punhos cerrados, cabeça baixa, sobretudo quando falavam de crianças, balanço de cabeça em negação. Braços cruzados, pausas longas, choro, comoção, voz tremida, riso forçado, elevação de voz, discurso desorganizado. Por vezes coraram.Vergonha e culpa vs. raiva e agressividade “Eu já tinha vergonha de sair de casa, mas tinha de ir buscar as crianças e fazer recados. As pessoas olhavam para mim e eu pensava: ‘O que é que pensarão?’. Houve também uma altura em que.... a culpa não é nossa... mas houve uma altura em que eu me culpei pelas situações de discussão... sei perfeitamente que ninguém tem culpa de ser tratado assim, mas... agora sei que (...) deixei de reagir porque tinha vergonha de tudo isto, estávamos sempre a lutar... estava a tentar deixá-lo, mas... já tinha vergonha de correr para casa dos meus pais, por exemplo... como diria a minha irmã: ‘Vais para lá durante dois ou três dias e depois voltas sempre para ele!’ Sim, eu já estava a sentir vergonha à frente dos meus pais, pessoas que me conheciam.”Ana, 37 anos, é uma das vítimas ouvidas no âmbito do estudo. E não destoa das restantes - as emoções verbalizadas mais habituais no discurso das vítimas, particularmente as que exibem maior passividade, são a vergonha e culpa. A culpa “que resulta da perceção de desajuste entre o comportamento das mulheres vítimas e os valores sociais de género interiorizados e a vergonha, uma consequência da perceção das vítimas de que não estão a corresponder aos modelos socialmente partilhados de conjugalidade, de maternidade e de género”, diz o estudo. Ambas “conduzem à ocultação e ao silenciamento do estatuto de vítima, assim reforçando as reações passivas e limitando a capacidade para a rutura”. Mas também o medo, que surge paralelamente ao exercício de violência física e psicológica, e a alienação emocional - um estado emocional de anulação identitária, de baixa autoestima e de incapacidade para a ação. Raiva, desprezo, vergonha, desvalorização dos atos de violência e das consequências na vítima, ciúme, culpa (quando falam de ter agredido os/as filhos/as) ou autojustificação foram as emoções mais verbalizadas pelos agressores. A violência no contexto da intimidade decorre das desigualdades entre os géneros masculino e feminino. É praticada maioritariamente por homens que expressam os modelos estereotipados da masculinidade, exercendo-se contra mulheres, o que expressa a assimetria de poder entre ambos. “Trata-se de uma violência que produz, reproduz e reforça a desigualdade de género. À construção social do género corresponde uma experiência emocional dissemelhante entre o ser homem e o ser mulher, e que reforça as desigualdades entre ambos.”A construção de valores e modelos associados ao masculino privilegiou o recurso a powerful emotions (emoções com poder) como a raiva e, no feminino, estão associadas a powerless emotions (emoções sem poder), como a culpa e a vergonha. “Aliás, esta genderização emocional terá favorecido o homem no domínio da esfera pública, ao mesmo tempo que atribuiu às mulheres a manutenção do espaço da casa-família e dos afetos”, conclui o estudo.