Polícias. Longe da família, em camaratas imundas, mal pagos e em carros velhos
Os agentes em formação na Escola Prática de Polícia, em Torres Novas, já sabem onde vão parar, ao serviço, quando terminarem o curso: sejam oriundos de Trás-os-Montes, do Minho, das Beiras, do Sul, da Madeira, dos Açores - são todos colocados em Lisboa. Não vale a pena sonhar que em breve podem voltar para a família distante. Terão de aguardar uma dezena de anos, ou mais, pela guia de marcha. Podem pedi-la ao fim de um ano de serviço, mas à sua frente estão centenas de camaradas, com mais anos de farda, à espera da desejada transferência.
O afastamento forçado das famílias e a solidão, as tensões no dia a dia do policiamento, a falta de condições das camaratas, a disciplina a que são sujeitos, a frieza do trato imposto pelos superiores hierárquicos - eis o perigoso cadinho onde fervem os principais motivos que levam ao suicídio entre as forças de segurança.
Nos últimos 24 anos, de 2000 até final de 2023, suicidaram-se 176 elementos das forças de segurança: 85 da PSP e 91 da GNR, segundo o chefe Miguel Rodrigues, professor universitário, dirigente do Sindicato Independente dos Agentes de Polícia (SIAP) e autor de um estudo académico sobre suicídios nas polícias.
“O número de suicídios nas forças portuguesas de segurança é dos mais elevados na Europa: a média ultrapassa as de Espanha, França, Bélgica e Itália. É quase duas vezes maior do que na população em geral: o equivalente a 17 casos por 100 mil habitantes”, diz Miguel Rodrigues ao DN.
A larga maioria - 90% - escolhe matar-se a tiro. Segundo o estudo do chefe Miguel Rodrigues, um número ainda considerável de suicidas das forças de segurança, 40%, envergou a farda - o que pode ser “revelador de um sentimento de raiva” contra a PSP ou a GNR. Há quatro anos, no Alentejo, um agente da PSP fez questão de vestir a farda de gala para se matar com um tiro na cabeça.
Não há apoio psicológico
O apoio psicológico oferecido aos agentes das forças de segurança é escasso. “Na PSP, e tanto quanto sei também na GNR, não há psicólogos em número suficiente”, frisa Miguel Rodrigues. O Comando Distrital da PSP de Viseu, por exemplo, tem apenas uma psicóloga para mais de uma centena de polícias. Segundo o comandante, intendente Rui de Matos, os efetivos são avaliados em consultas individuais duas vezes por ano.
A larga maioria dos 50 mil efetivos da GNR e da PSP está longe das suas raízes e da família - e nos diversos comandos são escassas e imundas as camaratas onde podem dormir.
A solução é, na maior parte das vezes, a solidão de um acanhado quarto arrendado. O salário não dá para mais. Para fugirem às quatro paredes do quarto, juntam-se em grupos de cinco ou seis e arrendam uma casa - o que é cada vez mais difícil por causa da crescente carestia de rendas.
“Às dificuldades do dia a dia, juntam-se a escassez dos rendimentos, a insensibilidade da hierarquia e a formação deficitária durante o período do curso”, sublinha Miguel Rodrigues.
O agente Miguel terminou a formatura na Escola Prática de Polícia há quatro anos. Ninguém lhe disse que ia ser colocado numa divisão de Lisboa - e a habitar, longe da família, uma camarata húmida e gelada, paredes enegrecidas pelos fungos, infestada de ratos e baratas.
Estas camaratas da 4.ª Divisão de Lisboa, no Largo do Calvário, em Alcântara, nem sequer têm água quente. Miguel e os 29 agentes que ali vivem, todos oriundos do norte do país, tiveram bom remédio se queriam tomar um banho nestas manhãs de inverno: inscreveram-se num ginásio para conseguirem ter aquilo que a Polícia não lhes dá - água quente para um banho.
Miguel e os 29 companheiros de camarata estão entre os polícias que, desde o último domingo, se têm manifestado, dia e noite, em silencioso protesto à frente da Assembleia da República.
Não lutam apenas por melhores salários. Um agente em início de carreira leva para casa 967 euros mensais, incluindo os suplementos, e outro com dez anos de serviço ganha, por mês, 1094 euros.
“Reivindicamos um subsídio de risco e que todos os suplementos sejam incluídos no salário de maneira a contarem para a reforma. E exigimos condições de trabalho e que sejamos tratados com dignidade”, diz ao DN o chefe Nuno Castro, da Associação Sindical Autónoma da Polícia (Asapol).
Perigo sobre rodas
O chefe Castro está colocado na Divisão de Loures, que dispõe apenas de um carro-patrulha - uma única viatura para servir as esquadras de Sacavém, São João da Talha, Santo António dos Cavaleiros e de Caneças. O carro-patrulha de Caneças, por exemplo, está parado há meses à espera de uma bateria.
A frota da PSP está velha. Os carros caem aos pedaços. Os que ainda resistem “só circulam porque os agentes os reparam ou levam-nos a reparar, às vezes pagando até do seu próprio bolso”, segundo conta Armando Ferreira, presidente do Sindicato Nacional da Polícia.
Os carros-patrulha são perigosos. “Andam sem a inspeção em dia”, garante ao DN um comissário do Comando Metropolitano de Lisboa. Nem há dinheiro para substituir os pneus carecas. “Quando respondo a uma chamada conduzo com o coração nas mãos”, diz o agente Trindade.
Mas a condução dos carros-patrulha que já devem uns anos à sucata acabou - os polícias, como forma de protesto contra as atuais condições de trabalho, recusam-se a arrancar em viaturas em mau estado.
O protesto começou há uma semana, por iniciativa do agente Pedro Costa, colocado na Divisão do Aeroporto, que iniciou a vigília na escadaria de acesso ao Parlamento. Outros foram atrás e seguiram-se muitos mais, num movimento que surpreendeu as associações profissionais. Há quem veja aqui a mãozinha do Chega. Pedro Costa nega qualquer ligação a partidos.
O protesto, preveem dirigentes sindicais, não vai abrandar e vêm aí mais formas de luta. Esta sexta-feira, na vigília à porta do Parlamento, discutia-se a possibilidade de os polícias se recusarem, pura e simplesmente, a conduzir carros-patrulha. “Ter carta de condução não é requisito para ser admitido na Escola Prática de Polícia”, explicava um agente. Os carros ainda vão ficar parados à porta das esquadras.