Miguel Stanley: “Pode ter-se cistos nos dentes e não ter uma dor.” Como a IA ajuda a detetar doenças na boca
Há uma fronteira, na medicina ocidental, entre o que é saúde oral e o resto do corpo - e é preciso acabar com ela. Isto porque o que se passa na boca tem impacto na saúde geral das pessoas, mas os médicos tendem a ignorá-lo. Quem o diz é o dentista Miguel Stanley, que tem dedicado os últimos 25 anos da sua vida a investigar e promover as mais avançadas práticas da sua profissão, um trabalho agora reconhecido pela Universidade de Harvard, nos EUA.
Stanley é, desde sexta-feira, membro fundador do Clinical Innovation Advisory Board da Universidade de Medicina Dentária de Harvard, um conselho consultivo internacional que integra 11 especialistas de várias áreas - “metade são dentistas e os outros são cientistas”, diz ao DN - para “discutir a influência das tecnologias, separar marketing de ciência, usar os alunos da Faculdade de Medicina Dentária da Harvard, que é das mais antigas do mundo e estudar a integração dessas tecnologias”, explica.
O convite foi feito diretamente pelo reitor daquela faculdade, William V. Giannobile, “após ter assistido a uma palestra” que Miguel Stanley lá deu, em outubro.
Isto porque a divulgação, tanto entre especialistas como para o público em geral, das práticas mais avançadas em Medicina Oral tem sido uma missão assumida pelo clínico português de 52 anos.
Autor de mais de 250 palestras e do documentário de 2018 da National Geographic O Futuro do Sorriso - “a única vez na história da National Geographic que tocaram no tema da Medicina Dentária” -, Stanley garante ainda que aplica todo o know-how que adquire no sua clínica em Lisboa, a White Clinic.
Aqui já utiliza, explica ao DN, sistemas de Inteligência Artificial para detetar infeções e outras doenças na boca - ou o risco de estas virem a surgir - nos exames realizados em consulta.
“Associei-me a um investidor ucraniano muito forte na área da Inteligência Artificial e criámos a nossa própria IA chamada Missing Link.”
Miguel Stanley, médico dentista
“Associei-me a um investidor ucraniano muito forte na área da Inteligência Artificial, com fortes investimentos nos Estados Unidos, e criámos a nossa própria IA chamada Missing Link”, diz ao DN. “E o que é que faz esta IA? Olha para os raios-X panorâmicos” - aqueles que se tiram quase por rotina em qualquer dentista, que ‘apanham’ toda a dentição - “e diz, atenção! Há aqui qualquer coisa”.
“Esta IA foi desenvolvida para seguradoras, médicos que não percebem nada de Medicina Dentária, para poderem verificar se há qualquer coisa, dando-lhes mais uma métrica para dizer ao paciente: vá a um dentista que tenha uma TAC”, explica o médico, que acrescenta: “Estamos em fase de testes com algumas seguradoras, e posso dizer que não somos únicos nisso - há cada vez mais sistemas de IA a entrar no mercado a olhar para raios-X.”
Este tipo de ferramenta será assim uma potente arma, espera-se, para que a saúde oral deixe de ser vista apenas como um problema a ser observado pelos dentistas, mas algo que pode afetar todo o sistema imunológico das pessoas, impactando até nas doenças cardiovasculares, na diabetes ou até no Alzheimer.
“Está absolutamente comprovado que 22 a 23 doenças não-comunicáveis estão diretamente ligadas à inflamação oral”, diz o também professor associado da Escola de Medicina Dentária da Universidade da Pensilvânia, acrescentando: “É muito importante os leitores entenderem a diferença entre inflamação aguda e inflamação crónica. Tanto uma, como a outra podem nunca dar dor. Pode ter-se cistos na boca, em todos os dentes e nunca se ter uma dor de dentes. E esse é que é o problema. Então, muita gente espera até ter dor, e quando tem dor já é devastadoramente tarde demais.”
Ora os próprios tratamentos dentários aplicados não são todos iguais - a sua qualidade varia de dentista para dentista, o que dificulta a escolha do paciente. E também necessitam de manutenção regular, algo que a maioria das pessoas faz por ignorar: “Um dos maiores causadores, hoje em dia, de inflamação crónica nos humanos são os tratamentos dentários antigos. Não é a cárie, não é a gengivite, que são autocriados por má higiene.”
Stanley exemplifica: “As próteses mamárias a cada 15 anos têm de ser trocadas, a córnea, aos 10 anos, tem que ser trocada, o pacemaker é-o a cada 10 anos, a anca a cada 15 anos... Os tratamentos dentários também têm essa meia-vida. Mas hoje em dia há pessoas que têm coroas, pontes e implantes feitas no século passado. Aí sim, pode ser dos sítios mais sujos que se possa imaginar!”
Apenas com este tipo de consciência, defende, tanto de paciente como de médicos de outras especialidades, será possível “trazer a boca de volta para o corpo” - ou seja, olhar para os problemas de saúde oral com o mesmo peso com que, tradicionalmente, se olha para outras doenças. Programas como o Missing Link, advoga, por serem “inteligentes e idóneos”, são um passo nessa direção.