Os detido são presentes a um tribunal superior, no caso o Tribunal da Relação, e por norma ficam em prisão preventiva.
Os detido são presentes a um tribunal superior, no caso o Tribunal da Relação, e por norma ficam em prisão preventiva.Paulo Jorge Magalhães/Global Imagens

PJ captura em três meses o dobro dos fugitivos do ano passado

Quarenta procurados pelas autoridades internacionais foram detidos pela PJ só no primeiro trimestre de 2024. Em período homólogo do ano passado foram detidas 22 pessoas. A PJ explica este aumento com reforços e trabalho em equipa.
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O homem, sem poiso fixo, deambulava entre a zona de Vila do Bispo, no Algarve, e o sul de Espanha, num jipe, como se nada fosse. Só que o indivíduo, que se cruzou com inúmeros portugueses e espanhóis, nos seus passeios, tinha sido condenado a 20 meses de prisão, nos Países Baixos, pela violação de seis mulheres. Resolveu fugir e escapar à cadeia.

Sucede que sob ele pendia um mandato de detenção europeu e a “notícia vermelha” – é assim que os inspetores chamam a estes alertas – fez soar os alarmes na Polícia Judiciária (PJ). “Os factos ocorreram entre 2013 e 2017, altura em que o detido exercia atividade profissional numa casa de massagens tântricas. Aproveitando-se do facto de ser massagista, o homem, de 59 anos, violou pelo menos seis mulheres”, pode ler-se no comunicado da PJ. 


Este foi mais um caso a acrescentar aos 40 fugitivos que foram apanhados pela equipa da Unidade de Informação Criminal (UIC) da PJ, apenas nos primeiros três meses deste ano. Cerca do dobro das capturas ocorridas o ano passado, em período homólogo: 22. “Este aumento justifica-se pelo crescente reforço, capacitação, conhecimento e networking transversal à atividade da equipa”, revela a PJ.


Houve mais. Em março, por exemplo, a UIC deteve, na região Centro, um cidadão estrangeiro de 37 anos, sobre o qual pendia um mandado de detenção internacional, emitido pelas autoridades judiciárias brasileiras.

A detenção ocorreu no contexto de uma operação conjunta com a Polícia Federal brasileira, desencadeada em simultâneo nos dois países, visando o desmantelamento de uma rede criminosa organizada de tráfico internacional de estupefacientes. O esquema consistia no transporte de contentores com grandes quantidades de droga, a partir de vários portos do nordeste brasileiro, com destino à Europa.


No mesmo mês, um homem condenado a 10 anos de prisão, pelo crime de homicídio na forma tentada, foi detido no Norte. O fugitivo, de 61 anos, tentou assassinar outra pessoa, por causa de uma discussão no trânsito, em 2017, atropelando propositadamente a vítima e arrastando-a alguns metros até embater num autocarro. 


Em abril de 2020 foi obtida informação de que o homem tinha viajado para a Europa e, mais tarde, entrou em Portugal. Ficou em preventiva a aguardar extradição para o Brasil. “A análise prévia da informação que chega, por parte de quem emite os mandatos, e que chega cada vez mais rica, permite-nos ter outro tipo de enfoque analítico. E os resultados surgem”, avança José Leal, diretor da UIC.


Quanto ao violador holandês, que andava a deambular entre o Algarve e o sul de Espanha, as “férias” acabaram no dia 13 deste mês, quando foi surpreendido pelos inspetores da UIC. “No caso desse cidadão já vinha alguma informação rica na origem [autoridades dos Países Baixos], nomeadamente sobre o carro. Depois, nós vamos à procura desses pequenos rastos para definir onde é que a pessoa possa estar, em Portugal”, começa por explicar Fernando Santos, 54 anos, inspetor da PJ.

“Ele andava de um lado para o outro mas tem de comer; precisa de água; precisa de ir abastecer o carro; ia fazer surf, adianta ainda o inspetor. “Há sempre qualquer coisa e é nesses pequenos nadas que vamos ao encontro [dos foragidos]. O único senão é que temos de perder tempo. Pode demorar dois ou três dias como pode demorar meses”, acrescenta Miguel Gonçalves, inspetor-chefe da UIC.


O sucesso da UIC prende-se com a maior colaboração entre a PJ e as suas congéneres estrangeiras mas também com a dedicação dos operacionais. “Quem os conhece diria que serem inspetores da PJ era o primeiro desejo que eles tinham desde miúdos”, orgulha-se o diretor José Leal.

Ao mesmo tempo, os inspetores estão ligados, diretamente, aos colegas de outros países, através da Rede ENFAST - European Network of Fugitive Active Search Teams. “Estamos sempre em contacto e reunimos com uma regularidade anual. Conhecemo-nos mutuamente e temos confiança entre todos os parceiros. Eu sei com quem estou a falar em cada país”, refere o inspetor Fernando Santos. “A informação é mais célere e sabemos quem é que trabalha especificamente nesta área”, completa José Leal.


Quando foi apanhado pelos inspetores da PJ, o violador holandês “momentaneamente não ficou alegre, resignou-se”, revela o inspetor Fernando Santos. Muitos dos foragidos, quando caem nas mãos das autoridades “têm tendência a perguntar, depois de a situação já estar um bocadinho mais serena: ‘mas como é que chegaram até mim?’. Foi o caso”, revela o inspetor-chefe, Miguel Gonçalves.


O fugitivo foi, então, presente ao tribunal da relação de Évora, que determinou que ficasse a aguardar o processo de extradição em prisão preventiva.


A equipa é composta pelo diretor e 11 operacionais e está focada “no processo de análise prévia de mandatos de detenção, sejam eles de natureza internacional ou nacional, no âmbito das competências reservadas à PJ”, explica José Leal.

José Leal, diretor da unidade de informação criminal da PJ.
Paulo Alexandrino/Global Imagens

Essas competências prendem-se “de uma forma geral com a criminalidade violenta, organizada, grave, criminalidade de teor transnacional ou nacional. Por detrás deste tipo de criminalidade há dezenas de crimes, materializados no âmbito do Direito Penal: homicídios, tráfico de droga, tráfico de seres humanos violações...” 


Além desta perseguição aos que andam fugidos à Justiça, a UIC ocupa-se, também, de casos de desaparecidos “em particular pessoas especialmente vulneráveis, em razão da idade ou da sua saúde, ou, quando subjacente ao desaparecimento, possa haver uma suspeita da prática de um crime da competência da PJ”.


O trabalho dos inspetores da UIC começa quando há um mandado de detenção nacional ou internacional. “A nossa atuação só pode avançar a partir do momento em que é inserida aquilo que nós designamos por ‘notícia vermelha’”, explica o inspetor-chefe Miguel Gonçalves. A ‘notícia vermelha’ pode chegar através da Interpol, Europol ou das autoridades nacionais. “A partir daí qualquer país que localize o indivíduo pode proceder à sua detenção”.


Hoje , os mandados de detenção europeus estão mais facilitados. “Nestes casos, não é uma extradição, é uma entrega. Portugal entrega [o fugitivo] ao país que está a solicitar. Assim como o país que nos está a solicitar, também nos pode entregar um indivíduo, quer seja para procedimento criminal , quer seja para o cumprimento de pena”, explica José Leal. 


Os casos de fora da Europa são mais complicados. “No mandado de detenção internacional é completamente diferente, não é tão ágil”. E dá um exemplo: “No mandado de detenção europeu, um indivíduo que tenha sido detido aqui em Portugal, obrigatoriamente vai sempre a um tribunal superior – o Tribunal da Relação competente – para ser ouvido pelo juiz. Se logo naquela altura aceitar a sua entrega, e o juiz também assim o entender naquele dia, [o indivíduo] tem de ser entregue ao país que o requereu em dez dias seguidos”. 


Nos casos de fora da Europa “há uma garantia que tem de ser cumprida: Não há nenhum cidadão que seja detido em Portugal que possa ser condenado a mais de 25 anos de prisão [a pena máxima em Portugal]. Se o crime que cometeu, no país de origem tiver uma pena de prisão perpétua ou superior a 25 anos, ele nunca é extraditado se Portugal não obtiver garantias”, prossegue José Leal.

O inspetor-chefe Miguel Gonçalves conta: “Em tom de brincadeira costumamos dizer: ‘Olha a sorte dele! Se fosse lá no país dele apanhava 60 anos’. Aqui não pode apanhar mais do que 25, mesmo que seja extraditado”. 


Ainda assim, nem sempre os objetivos são cumpridos. “Tivemos um caso que metia um grande traficante colombiano, que estava cá em Portugal”, começa por contar o inspetor-chefe Miguel Gonçalves. “Este trabalho foi desenvolvido, inicialmente, a pedido das autoridades espanholas que, tal como nós, têm uma grande ligação às suas antigas colónias. Havia um mandado de detenção internacional e o indivíduo estaria cá, com a companheira e o filho”, prossegue.

“Fomos para o terreno e acabámos por perceber que ele estaria num determinado local, num apartamento. Montámos uma vigilância para perceber qual a altura mais oportuna para podermos atuar. Numa noite, o indivíduo estava a preparar-se para se meter num táxi e ir-se embora. Aqui o inspetor Fernando, com o resto da equipa, conseguiu deter o indivíduo, que foi presente ao Tribunal da Relação”. Porém, o colombiano não ficou em prisão preventiva. “Por motivos que nos ultrapassam isso não aconteceu. Sucede que o homem também tinha nacionalidade israelita. No mesmo dia, apanhou um avião e foi-se embora para Israel”. 


Mas a PJ nunca desiste. “Temos de ter resiliência, porque depois de um caso vem outro”, avança José Leal. “Muitas vezes trabalha-se muito sobre um determinado caso e não se consegue chegar, simplesmente, porque não há onde chegar. Conclui-se, por exemplo, que o indivíduo não está em Portugal, está noutro local”. 


Ainda assim, não é tempo perdido. “No contexto do esforço internacional para capturar estas pessoas é muito importante. Ao termos esgotado as possibilidades de investigação para saber se ele está em Portugal ou não, e colhendo informação que está noutro país, isso é vital para nós podermos transmitir essa informação, para que o outro país possa desencadear as ações que tiverem de ser feitas para a localização e detenção do indivíduo”, finaliza o diretor da UIC.

Inspetores lidam com o perigo e confessam que o medo “faz parte”

"Temos a nossa vida normal. Sou casado, tenho mulher, filhos, o meu colega também”, começa por descrever  Miguel Gonçalves, inspetor-chefe da Unidade de Informação Criminal (UIC) da PJ. “Também vou às festas de anos dos amigos dos meus filhos e da escola. Não todas, porque muitas vezes a profissão não permite”, lamenta. 


As vigilâncias que são montadas aos fugitivos, e outras diligências, ditam que, muitas vezes, os inspetores tenham de trabalhar fora de horas. “Estamos mais limitados do que um indivíduo, por exemplo, que trabalha numa seguradora, que entra às nove e sai às cinco. Nós aqui sabemos quando entramos mas não sabemos quando saímos”, observa o inspetor-chefe.


O segredo é uma regra de ouro para quem trabalha no meio do crime. “Temos de ter uma certa discrição, não andamos a dizer aos vizinhos que somos da PJ”, observa Miguel Gonçalves. “E temos a facilidade de não termos farda, isso ajuda muito”, acrescenta Fernando Santos, inspetor da UIC. 


O perigo faz parte da profissão. Os fugitivos cometeram, ou no caso dos ainda não condenados, terão cometido, crimes graves. São, por norma, pessoas violentas. As famílias dos inspetores sabem disso, mas eles não fazem conversa sobre o assunto. “Não vamos para casa contar o nosso dia a dia. Temos de saber viver”, avança o inspetor Fernando Santos. “A família, às vezes, sofre um bocadinho”, afirma o inspetor-chefe Miguel Gonçalves. 


E há medo. “Se não tiver medo não serve para a função”, afiança o inspetor-chefe. “O medo faz parte, não nos pode é controlar. Temos de controlar o medo, não nos pode condicionar. Agora, todos temos de ter medo. As coisas têm de ser bem pensadas e sempre em segurança. Nunca se trabalha sozinho na polícia”, avança, por sua vez, o inspetor Fernando Santos.


O diretor da UIC, José Leal, concorda com os inspetores com quem trabalha: “O medo só é negativo se tomar conta de nós. Senão, põe-nos alerta”.


Os dois inspetores concorreram à PJ sem grandes romantismos. “Naquela altura, a única coisa parecida com a PJ, que havia na televisão, era o Zé Gato. Hoje já há os CSI e os miúdos todos, quando vêm para aí, já pensam mais nisso”, explica o inspetor-chefe. Miguel Gonçalves concorreu à PJ “por uma situação que surgiu”. “Um colega que estava na tropa não concorreu porque não tinha carta de condução, que é exigida. Eu tinha carta de condução e vim ver. Não sabia, ouvia falar da PJ e decidi concorrer... E em boa altura o fiz”, orgulha-se.


O inspetor Fernando Santos entrou para a Judiciária aos 29 anos. “Não lhe vou dizer que gostava de fazer isto desde pequenino. Foi uma circunstância e já tenho 25 anos de PJ”.


José Leal, o diretor, enfatiza: “Tendo em conta o empenho que eles têm, conhecendo-os bem, diria que desde pequeninos que gostavam de ser inspetores da PJ”.

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