"Pirola" é a última sub-linhagem que dominou o hemisfério Norte em pouco tempo
No dia 31 de dezembro passam quatro anos de que a Organização Mundial da Saúde (OMS) foi alertada oficialmente para a existência de um novo coronavírus na China, identificado como SARS-CoV-2, e que circulava a uma velocidade tal que rapidamente obrigou o mundo inteiro a confinar-se durante quase dois anos. Os primeiros casos foram identificados na província de Wuhan, infeções respiratórias tão graves que atiraram a esmagadora maioria dos doentes para as unidades de cuidados intensivos e para a morte, a ponto de o governo chinês decidir construir novos hospitais para albergar todos os doentes.
O medo deste novo coronavírus marcou o início de 2020, sobretudo quando os primeiros casos chegam à Europa, logo no final de janeiro e princípio de fevereiro. O vírus entrou primeiro no Reino Unido e em Itália, depois seguiu para França, Espanha e Portugal, onde os primeiros casos foram registados a 2 de março. No outro lado do mundo, EUA, Canadá e América do Sul começaram a sentir os efeitos um pouco mais tarde do que a Europa, mas a 11 de março a OMS decretava o estado pandémico.
Em 100 anos, era a segunda pandemia, depois da Gripe Espanhola, que mais assustava as autoridades de saúde e que acabou por provocar mais mortes (quase sete milhões, segundo a plataforma Worldometers, que continua a fazer a monitorização da doença com base nos casos declarados à OMS).
Ao todo, e até agora, há registo de quase 700 milhões de infeções pelo SARS-CoV-2 (699 013 45) em todo o mundo, de quase sete milhões de mortes (6 948 590) e de quase 700 milhões de doentes recuperados (669 074 315). Em Portugal, os dados oficiais dão conta de quase 6 milhões de infeções e de mais de 27 mil mortes.
Mas tal como há quatro anos, ainda hoje a ciência não arrisca certezas sobre a origem do vírus, apesar dos estudos feitos e das várias teses desenvolvidas. Como é que este coronavírus terá passado a barreira das espécies continua sem uma resposta definitiva. Houve quem defendesse que tal teria acontecido a partir de um mercado de peixe na província de Wuhan, através de um morcego, outros de um pangolim, embora esta tese tenha sido depois deixada para trás. Mas há uma outra que ainda se mantém sem resposta: se terá surgido de uma fuga laboratorial.
A única certeza que parece existir sobre o SARS-CoV-2 é que "veio para ficar e que continua a disseminar-se e a evoluir por si", a uma velocidade tal que ultrapassou a do vírus da gripe, "consegue mutar-se ao dobro da velocidade do vírus da gripe", dizem os especialistas. "O novo normal é termos de saber lidar com um novo vírus a circular", defende o pneumologista Filipe Froes, ex-coordenador do Gabinete de Risco da Ordem dos Médicos para a Covid-19. No entanto, destaca, "ao fim deste tempo, parece começar a dar fortes sinais de um princípio de sazonalidade". Ou seja, e depois de o mundo ter registado ondas e picos de doença tanto no inverno como no verão, "agora parece indicar alguma sazonalidade para esta época".
Segundo o pneumologista, este é um dos dados mais curiosos do momento. "Embora estejam a ser registados casos no Extremo Oriente, na China, no Japão e na Austrália, talvez se possa começar a vislumbrar um princípio de sazonalidade com o desenvolvimento da última sub-linhagem da variante Ómicron, que é a BA.2.86, que já derivou na JN.1". A verdade é que o vírus está com muito mais atividade no hemisfério Norte, em época de frio, do que no hemisfério Sul", argumenta Filipe Froes. Aliás, o médico sublinha que "os relatórios internacionais indicam haver um crescimento exponencial da BA.2.86 e da derivada JN.1 em países como a Dinamarca, Finlândia, EUA, Canadá e Reino Unido".
Portugal não foge a esta realidade. O último relatório publicado pelo Instituto Nacional Dr. Ricardo Jorge (INSA) a 21 de novembro, "corrobora a realidade que se está a viver no mundo em que a BA.2.86 e a sua derivada JN.1 são dominantes", afirma.
O epidemiologista e professor da Faculdade de Ciências da Universidade de Lisboa, Manuel Carmo Gomes, que liderou a equipa que faz a monitorização da doença no nosso país desde o início, confirma: "A JN.1, que na gíria é denominada como "Pirola", já é dominante em Portugal, desde o fim de outubro início de novembro, em França e noutros países europeus. É uma descendente da BA.2.86, que tem revelado características que lhe dão uma grande vantagem na fuga aos anticorpos".
Manuel Carmo Gomes explica que "a JN.1 foi detetada nos EUA no final de setembro e rapidamente se disseminou, embora não seja tão rápida como a BA.1, a primeira sub-linhagem da Ómicron, que bateu todos os recordes, segundo estudos comparativos", continuando: "Quando esta sub-linhagem foi detetada criou alguma preocupação às autoridades de saúde e houve logo a necessidade de a comparar com a Ómicron, mas percebeu-se que, afinal, não era tão rápida". Embora, recorda o epidemiologista, "a capacidade de mutação do SARS-CoV-2 seja uma das suas marcas, pois continua a mutar-se para fugir aos nossos anticorpos, muda ao dobro da velocidade do vírus da gripe, mas não se está a tornar mais patogénico. Pelo menos, que se tenha detetado até agora".
Destaquedestaque"Neste momento, quer a notificação de casos, de óbitos e de internamentos à OMS, quer a vigilância genómica são muito deficitárias, estão a ser prejudicadas pelo número reduzido de infeções reportadas."
O infecciologista António Silva Graça sublinha ao DN que a grande capacidade de mutação do SARS-CoV-2 é uma das características que marcam este coronavírus. "Nunca se sabe quando poderá aparecer uma mutação mais resistente, porque a capacidade de mutação do vírus é realmente muito grande e há sempre a preocupação que o vírus que se segue possa vir a ter outras características".
Esta é mesmo a preocupação que acompanhará o futuro do SARS-CoV-2. Porquê? "Porque do verão até agora a análise genómica do vírus permitiu perceber que, em pouco tempo, uma derivada da sub-linhagem da Ómicron, a Xbb, já deu origem à EG.5, à BA.2.86 e agora à JN.1", que já é dominante no hemisfério Norte.
Por isso, "é muito importante que se continue a fazer a vigilância genómica do vírus, que se consiga avaliar a capacidade de mutação do vírus e as suas características a par e passo, para que, na sequência das suas mudanças, o possamos ultrapassar com as defesas que as vacinas nos dão". Silva Graça diz que tal é tão mais importante nesta altura quanto mais se percebe que este tipo de "avaliação está a ser um pouco desvalorizado pela maioria dos países". E argumenta: "Neste momento, quer a notificação de casos, de óbitos e de internamentos à OMS, quer a vigilância genómica são muito deficitárias, estão a ser prejudicadas pelo número reduzido de infeções reportadas."
Manuel Carmo Gomes assume que, na sua faculdade continua a fazer-se "a monitorização da doença, mas a um nível muito inferior do que aquele que se fazia em 2021 e 2022", mas isto não acontece só em Portugal "houve um decréscimo na vigilância em todo o mundo", justifica, a partir do momento que a OMS decretou o fim do estado pandémico. Em Portugal, só são contabilizados os casos que são testados positivos em idas às unidades de saúde.
Talvez por isso mesmo, "o número de casos de covid-19 no nosso país tenha atingido mínimos históricos. Nunca tivemos valores tão baixos. A média é de 110 a 120 casos diários, no inverno passado, nesta altura, estávamos entre os 200 e os 330", diz o epidemiologista. De acordo com os últimos dados da Direção-Geral da Saúde (5 de dezembro), o número de casos variou nos últimos 15 dias entre um mínimo de 37 ( 26 de novembro) e um máximo de 197 ( 4 dezembro), e o número de mortes entre zero e seis (30 e 27 de novembro).
No início de dezembro, o número de mortes diárias tem sido de uma a quatro. Manuel Carmo Gomes alerta: "Estes são os casos conhecidos, que não podemos confundir com os casos reais", porque, agora, mesmo quando "as pessoas têm sintomas e fazem o teste, a maioria não comunica às autoridades se está positiva ou não". Ou seja, "há uma subestimação nos números".
Destaquedestaque"De entre as doenças respiratórias, a covid-19 já não é aquela que está a dar maior preocupação. Pelo contrário, estamos a assistir à subida de outros vírus respiratórios, nomeadamente ao do sincicial e ao da gripe".
Os mínimos históricos revelam-se no número de casos mas também no número de internamentos. "Neste momento, temos 125 pessoas em hospital que testaram positivo, o que não quer dizer que estejam lá por causa da doença", diz o epidemiologista, destacando: "De entre as doenças respiratórias, a covid-19 já não é aquela que está a dar maior preocupação. Pelo contrário, estamos a assistir à subida de outros vírus respiratórios, nomeadamente ao do sincicial e ao da gripe".
Manuel Carmo Gomes reforça, por isso, a mensagem de que a vacinação é importante, sobretudo para os grupos vulneráveis e pessoas com ou mais de 60 anos. "O vírus continua espantosamente a tentar fugir aos nossos anticorpos a uma velocidade extraordinária. Felizmente, hoje, já temos todos uma grande barreira imunitária, ou porque fomos infetados ou porque fomos duplamente vacinados ou as duas coisas, mas nunca se sabe o que pode vir aí. E as vacinas deste ano já estão adaptadas a todas as variantes identificadas no final de 2022 e em 2023, principalmente a JN.1, o que nos dá uma dupla proteção".
Filipe Froes concorda que hoje "só por ignorância é que uma pessoa pode pensar que não vai ter covid ou que a covid é uma doença ligeira, quando não se está vacinado. É preciso não esquecer que, em Portugal, morreram mais de 27 mil pessoas". O médico defende até outras medidas como: "Baixar o limite de idade para a vacinação nas farmácias, dos 60 para os 50 anos, nova campanha para a vacinação das pessoas que corram maior risco de serem infetadas (funcionários de transportes, profissionais da restauração, professores, empregados do comércio, etc)".
O pneumologista sustenta que "a melhor forma de continuarmos a lutar contra a doença é com a vacinação. A estratégia não pode ser poupar vacinas, mas gastar as vacinas", considerando que a taxa de vacinação alcançada até agora, tendo em conta que esta começou a 29 de setembro, é reduzida. "Nesta semana, vacinaram-se cerca de 60 mil pessoas é pouquíssimo. Não podemos pensar que o facto de metade da população com mais de 60 anos estar vacinada é um bom valor, porque não é".
Os dados da DGS indicam que até ao dia 5 de dezembro tinham sido vacinadas 1 687 651 de pessoas (1 195 712 nas farmácias e 491 863 nas unidades do SNS), enquanto em relação à gripe na mesma altura já havia 2135 556 pessoas vacinadas. Para os especialistas ouvidos pelo DN "é muito pouco", com a preocupação acrescida que entre os 60 e os 69 anos só 30% da população foi vacinada, entre os 70 e os 79 foi vacinada 56% da população e com mais de 80 anos, apenas 60%.
O infecciologista António Silva Graça diz mesmo: "Temo que se não houver da parte das autoridades de saúde o alerta para a necessidade de reforço da vacinação para as pessoas com 60 ou mais anos, as pessoas não se vacinem. Também aqui se descurou a sensibilização da população, quando se sabe que só é possível evitar a doença grave e uma mortalidade mais pesada através da vacinação".
Manuel Carmo Gomes concorda, mas volta às medidas do passado relembrando que uma das certezas que se tem é que o vírus se transmite quando se inale o ar em que está suspenso, "é dos vírus mais contagiosas do mundo, só comparável ao do Sarampo e ao da Rubéola. Basta estar a respirar num espaço em que o vírus está para sermos contaminados. Portanto, além da vacinação continuem a arejar os espaços fechados e sempre necessário usar máscara".
O SARS-CoV-2 continua a ser uma incógnita, mas já se sabe que veio para ficar e que começa a dar sinais de sazonalidade e há sempre alguém mais vulnerável que pode ser infetado e que não consiga escapar ao desfecho fatal do vírus. Por isso, os especialistas dizem: "Não, não podemos esquecer a covid-19".