Paulo Nunes, o enólogo e a pessoa
O muito especial restaurante Horta dos Brunos, em Lisboa, foi o ponto de encontro que propus a Paulo Nunes, um dos grandes mestres da vinha e do vinho do nosso país, e também o responsável técnico - e não só - da Passarella, produtor de proa do Dão.
Como sempre acontece numa mesa portuguesa, vem uma profusão de entradinhas à laia de amuse-bouche. A seguir virá garoupa assada e é para lá que mentalmente nos dirigimos. Paulo Nunes explica: “Escolhi o Fugitivo Barcelo branco 2022, porque é uma casta que muito diz ao Dão.” Refere-se à casta Barcelo que, em 1900, Cincinato da Costa considerava estruturante da região.
Paulo Nunes é duriense, de Armamar, mas parte do seu coração mora no seu muito amado Dão. Granito muito presente neste vinho inaugural brilhante, através de um grupo de amargos fascinante, o que é logo início de conversa, pelo quanto se evita ainda falar do “assunto amargo”, que o grande público não conseguiu ainda acolher. Fez o curso de engenharia alimentar em Viseu, depois fez um mestrado misto, distribuído por várias academias, o que logo lhe deu a tarimba técnica que todos lhe reconhecem. Reconhece que lhe incutiu desde cedo a valorização do conhecimento. Até aos 18 anos, manteve-se por Armamar, mas depois a vida e a paixão pela profissão levou-o para muitas outras paragens, sempre com o firme propósito de saber mais. Mantém firme a sua fantasia de um dia fazer vinho nas suas origens.
Tem três filhos, de 12, 10 e 6 anos e a proximidade familiar é reduto fundamental para o seu equilíbrio. Quem diria que estamos perante um homem do mundo, ainda há menos de uma semana chegado de um périplo pelo Japão. Quem diria também que estamos perante alguém que encontrou nos seus verdes anos no teatro a terapia de que necessitava para vencer um irredutível receio de falar em público. Hoje palestrante brilhante e cristalino no pensamento.
Japoneses fãs dos vinhos portugueses
Serve-se o Villa Oliveira Encruzado 2020, profundidade desarmante e a discrição que tem tudo a ver com um certo lado B de Paulo Nunes. Aprecia neste vinho sobretudo o que nele é discreto e não standard e por isso defende aguerridamente a sua abordagem à casta.
O seu trabalho na Passarella é notável a todos os títulos e manifesta-se nos pequenos pormenores. Talvez fosse do sentido da novidade que rapidamente se instalou, mas fiquei admirado com a questão candidamente levantada pelo enólogo, por que razão não há restaurantes de chefs portugueses no Japão, quando o peixe é fundamental para nós.
Paulo Nunes visita o Japão há alguns anos e tem excelentes resultados com toda a gama da Passarella. Sei que a inquirição era retórica mas a verdade é que fiquei a pensar no assunto. Os japoneses são fãs dos vinhos portugueses, o peixe é um assunto que levam muito a sério - para lá do sushi e do sashimi - e provavelmente um restaurante português poderia ter muito sucesso. O nosso homem garante que sim.
Passámos para o vinho tinto O Enólogo Vinhas Velhas tinto 2019 quando o maravilhoso caldo de peixe destronou naturalmente o Encruzado e o recurso ao Barcelo inaugural também não deu inteiramente conta do recado. Altura para trazer à baila um assunto delicado e dileto: a acidez. Traz consigo diversas outras impendências. “A fragilidade aparente do Dão é na verdade profundamente estruturante.”
Seguiu-se ali mesmo uma aula magistral sobre a importância de uma boa acidez fixa, mais importante do que a graduação alcoólica e o tipo de vinho (branco ou tinto). A eficácia na destruição de proteínas e gorduras é bem mais importante, propus eu e o mestre concordou. Não há muitos dias assim na vida de um escriba, convenhamos.
Registei com surpresa, contudo o que revelou a seguir, acerca das especificidades de cada região vitivinícola. “Em todas elas está a haver autênticas revoluções”, afirma com veemência. “No fundo, todas as regiões nacionais estão a descobrir-se”, salienta o enólogo. “O próprio Douro tem muito ainda por desbravar.” Trás-os-Montes, Alentejo e Douro, têm ponto de convergência em António Boal, uma relação recente que já deu muitos frutos, mas que começou onde para o nosso enólogo tudo deve começar: na vinha. A Bairrada é de importância capital para ele - especialmente a Casa de Saima, que elevou a patamares elevados de sofisticação e onde continua orgulhosamente a oficiar.
“Lealdade é um termo e uma atitude que se pratica no Japão tanto nos negócios como na vida.” Este aspeto teve enorme impacte no especialista e faz parte da sua cartilha.
Vem para a mesa o arroz de costelinha, trabalho culinário exímio a que Paulo Nunes não consegue ficar indiferente. E até chama a atenção ao pormenor da acidez do prato, que é mais intensa na altura do inverno. Faz-lhe bem as loas o Villa Oliveira Vinha das Pedras Altas 2016 e é excelente para os ensinamentos do sábio com que tenho o prazer de compartilhar a mesa. Com os grandes aprende-se depressa.