"Os portugueses sabem dar a volta. Arranjamos sempre uma geringonça"

Teresa Paiva é a mais conhecida especialista portuguesa em doenças do sono. Mas a esta mesa de almoço fala-se de tudo um pouco. De comida, da família, do Alentejo e do gosto pela vida
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A o meio-dia o restaurante está vazio, preparado para os muitos clientes que chegarão enquanto conversamos. Há uma garrafa de vinho tinto em cada mesa, mas nem eu nem Teresa Paiva, a especialista nacional mais conhecida em assuntos do sono, vamos prová-lo. Ela bebe sempre água e eu acompanho-a nessa escolha, num almoço simples, saudável, mas saboroso. Foi a minha convidada quem fez questão de passar, uns dias antes, pelo restaurante e pedir ao senhor Ricardo que arranjasse uma mesa onde pudéssemos conversar. Porque ela, que ali vai com frequência, sabe que este restaurante do bairro de Campolide enche ao almoço. O Galula é o típico estabelecimento de bairro lisboeta, sem luxos mas acolhedor. "Gosto de vir aqui, a comida é boa e tratam-me bem." À mesa havemos de conversar de tudo: da sua família, de política (da nacional e da americana, que agora a preocupa tanto), da simplicidade de Campolide que mais parece uma aldeia grande, da Lisboa trendy ali ao lado em Campo de Ourique, do Alentejo que se transformou numa paixão e da sua especialidade - o sono... ou da falta dele.

Escolhemos ambas peixe-espada-preto com batatas e feijão-verde, embora eu tenha ficado a pensar nos pastéis de bacalhau fritos à colher com arroz de tomate... Mas peço poucas batatas e é a primeira vez que falamos das expressões populares associadas ao sono - "as batatas fazem sono". A neurologista esclarece que esse é um problema de todos os hidratos de carbono.

Teresa Paiva desculpa-se pela simplicidade do restaurante, que não é chique. Mas isso está longe de ser um problema, porque o importante é comer bem e ser bem atendida. E continua: "Tenho prazer em comer, mas os restaurantes não são uma prioridade para mim, não tenho curiosidade pelos restaurantes da moda, prefiro que mos sugiram e assim não preciso de desenvolver esforço."
E continua a falar de comida, agora da que gosta de fazer. "Gosto de cozinhar e cozinho bem. A minha especialidade é inventar." E "inventa" todas as quintas-feiras, dia em que junta a família à mesa de jantar, menos uma das três filhas, que está na Suíça. "Já estou a pensar o que vou cozinhar na quinta-feira." As azeitonas e o pão continuam intactos na mesa e a garrafa de vinho entretanto foi retirada. Decididamente, a segunda-feira não é dia para exageros gastronómicos.

Os netos - Carolina, 11 anos, João Miguel e Rodrigo, ambos com 6 - são o mote para falarmos dos maus hábitos de sono das nossas crianças e adolescentes. "Quando estão comigo, garantidamente vão dormir cedo. Os santos de casa nunca fazem milagres, mas os miúdos têm hábitos normais."
Hábitos muito diferentes de grande parte dos adolescentes e dos adultos - 20% dos portugueses têm dificuldade em adormecer, 60% têm problemas de sono, 70% deitam-se depois da meia-noite e levantam-se antes das 8.00.

As tecnologias e as redes sociais são em grande parte culpadas disso. Eis a explicação científica para leigos: "Tiram-nos o sono e outras coisas. A noção de que nunca estamos sossegados, de que estamos sempre a fazer qualquer coisa. O cérebro tem redes neuronais que funcionam em reforço, e durante o sono temos redes neuronais que vão funcionar por sua conta e risco e vão facilitar a aquisição de aprendizagem sem que a gente interfira nisso. O estar sempre a fazer qualquer coisa impede que estas redes atuem bem durante o sono, o que afeta a memória, o humor. Com a atual concentração nos telemóveis e nos media, costumo dizer, por brincadeira, que qualquer dia há um assalto e estão todos com o telemóvel e ninguém vê o assalto." Teresa Paiva sabe bem o que é presenciar e ser refém num assalto, pois encontrava-se na dependência do BES onde a polícia teve de matar um assaltante. Mas já lá iremos... Ou não tivesse sido um assunto que verdadeiramente lhe tirou o sono.

"Outro grande problema dessas pessoas é acreditarem que uma relação à distância é igual a uma relação pessoal. E para mim não é. As pessoas ficam coartadas emocionalmente, tenho visto doentes assim... Tenho doentes com 14 horas por dia de internet e outros de televisão."

Por isso defende que, mais do que nunca, é preciso respeitar a regra dos 8x3: oito horas de sono, oito horas de trabalho, oito horas de diversão. E o que é que perde quando esta regra aritmética não é cumprida? "Perde o sono, a diversão, a vida familiar, o contacto com os filhos, a mãe chega a casa cansada e faz o que eles querem. Uma série de coisas que ficam perdidas e deve lançar-se alertas."
Pergunto-lhe se nesta equação o trabalho ganha. "A OCDE diz que Portugal é o quarto país do mundo a trabalhar mais horas e é dos menos produtivos. O excesso de horas de trabalho não aumenta a produtividade, porque precisamos do tempo que estamos ocupados com coisa nenhuma para melhorar a capacidade, a diversidade, as nossas emoções. Os países do Norte da Europa saem todos às cinco da tarde e são ricos."

[citacao:Outro grande problema dessas pessoas é acreditarem que uma relação à distância é igual a uma relação pessoal. E para mim não é]

Começamos a trabalhar e a ter aulas muito cedo? Na sua opinião, devia haver horários desfasados, não estar tudo programado para começar à mesma hora. "Os horários matutinos das crianças são provocados pelos horários dos pais e estão interligados. Há crianças que abrem a escola e estão lá das oito da manhã até às seis ou sete da tarde. Um horror. As crianças estão a trabalhar mais de 40 horas por semana, que é o horário de um adulto."

Dormir pouco não ajuda nada no trabalho e a longo prazo traz aumento do risco de cancro, do risco de Alzheimer, depressão, insónias, tensão. Aumenta os comportamentos de risco e as falhas de discernimento e diminui a criatividade. "A diminuição das falhas de discernimento é um problema, já viu o que é a pessoa perder as capacidades executivas?"

Argumento que cada um tem as suas necessidades de sono. Teresa Paiva põe-me no lugar. "Há uma curva gaussiana, a maior parte precisa de dormir sete ou oito horas e os adultos podem ir até nove. Abaixo de cinco horas é seríssimo e abaixo de seis é sério, a menos que seja um short sleeper. Mas há muitas pessoas que acham que o são e não são, têm privação de sono e aguentam... até um dia." Ao fim de 20 anos de privação do sono, é praticamente garantido que surjam consequências, depressões, burnout...

O senhor Ricardo serve o almoço. O peixe-espada-preto por dentro é branco como a neve e por fora já não tem vestígios da pele, porque faz questão de a tirar. Depois desta explicação, aproveito a expressão short sleeper e falo do Presidente da República, que tem fama - e o proveito, parece - de dormir pouco. Pensava que tínhamos ali pano para mangas, mas a resposta surgiu pronta e entrámos por outro caminho, o da política: "Não gosto de falar do sono do Presidente. Gosto muito dele, ainda ontem [no domingo] deu uma entrevista fantástica. Entrámos em paz. A guerra não é fecunda."

Acompanha a política quanto baste e está confiante no futuro da geringonça. "António Costa e o Presidente fizeram uma coisa que é suposto fazerem, que é trabalhar para o bem do país em vez de para o bem dos partidos. Ambos têm essa noção", vai dizendo, enquanto põe em prática o hábito infantil de transformar as batatas quase em puré.

Queria perguntar-lhe se não a preocupa a desavença na geringonça por causa da TSU, mas a frase fica a meio. "Preocupa-me o Trump. Numa perspetiva otimista, que é a do nosso Presidente, acho que há uma coisa que pode funcionar de uma forma profética. A canção My Way, do Sinatra, que ele escolheu, tem como primeiro verso And now, the end is near." E ri-se da ironia.

Voltamos a Portugal e à situação privilegiada que temos em comparação com "a trapalhada" na Europa - a extrema-direita a ganhar terreno e as eleições em França sem ninguém carismático. Volto a perguntar se o BE e o PCP não estão a esticar a corda com a TSU. "O BE e o PCP perceberam ambos que se levam o governo a cair vão pagar uma fatura caríssima. Eles terão essa inteligência."

[citacao:Preocupa-me o Trump. Numa perspetiva otimista, que é a do nosso Presidente, acho que há uma coisa que pode funcionar de uma forma profética. A canção 'My Way', do Sinatra, que ele escolheu, tem como primeiro verso 'And now, the end is near']

Pelas questões políticas nacionais, Teresa Paiva dorme descansada. Quanto ao sono, segue todas as regras. Ao contrário de muita gente que tem perturbações ou privação. Os primeiros não dormem porque não querem, os segundos porque não são capazes. As insónias crónicas - mais de três vezes por semana, durante três meses - são um problema complexo e exigem tratamento médico para que as causas sejam identificadas. Uma das características destas pessoas é que sentem que dormem pior do que realmente dormem, além de catastrofizarem a situação, transformando o sono no problema nuclear da sua vida.

Antes de tomarem comprimidos para dormir, aconselha a médica, é preciso resolver problemas da vida ou mudar atitudes. A sua experiência é muito positiva: 90% das pessoas tratam-se bem. Fala quem já tratou mais de cinco mil doentes na sua clínica e outros tantos no hospital.

Para quem tem uma insónia esporádica, a solução é pensar em coisas agradáveis e não ligar. Um pouco de humor para relativizar o problema: "Todo o nosso organismo funciona para garantir a nossa sobrevivência, dormimos para garantir a nossa sobrevivência. Se não acordássemos a meio da noite já tínhamos sido comidos por um bicho há milhões de anos."

Arianna Huffington, fundadora do Huffington Post, pensava que não precisava de dormir, que podia trabalhar dia e noite, até que colapsou. No seu livro A Revolução do Sono alerta para esse risco e defende salas de sono no trabalho. Teresa Paiva acha que não seria bom para todos. "A sesta é uma coisa boa para quem gosta. O doutor Mário Soares dormia a sesta e respeitava as necessidades do corpo. O corpo dá-nos imensas dicas. Temos de olhar para os sinais."

Pergunto-lhe se é mesmo verdade que há pessoas com 30 anos que dormem na cama dos pais. Assente, sorrindo. "É uma habituação imensa. Há uma situação muito paradigmática: os pais separam-se, a mãe fica com a criança e passa a dormir com ela. Outra coisa são os pais que põem os filhos na cama quando eles choram. Há muita gente a dormir na cama dos pais na primeira década de vida, mais do que pensamos..."

Acabámos o peixe. Teresa Paiva não dispensa uma fruta bem madura à sobremesa e escolhe melão. Continua a explicar que na segunda década é menos frequente os filhos na cama dos pais, mas que há gerações em que esse hábito se perpetua. Uma explicação para isto, diz, é a sensação de culpa que os pais têm e que os leva a pôr os filhos no quarto. Depois, é muito difícil tirá-los de lá. Ou conseguir que adormeçam noutra cama.

Falamos agora das expressões populares associadas ao sono, como "a morte santa" atribuída a quem morre a dormir. "O sono é a antecâmara da morte. Há muita gente que tem medo de morrer a dormir - umas têm insónias, outras, como têm medo de morrer sozinhas, como as pessoas mais velhas, só dormem de dia porque de noite não têm ninguém por perto. Começam a ter a doença de atraso na fase do sono e vão para a cama às seis, sete ou oito da manhã, quando começam a ouvir barulhos." E surge um toque de humor: "Pessoalmente não gostaria de morrer a dormir. Gostaria de saber que morri!"
E o sono dos justos? "É porque a pessoa não leva preocupações para a cama. Está em dia com tudo. Mas dormir com os anjos deve ser mais engraçado!"

Peço um café, mas não me faz companhia. "De manhã encharco-me em café, se bebesse mais um não dormia." Aproveito a deixa para lhe perguntar se o assalto ao BES lhe tirou o sono. "Isso tirou, é a tal questão da sobrevivência!", afirma, a rir-se. Perdeu o sono transitoriamente, teve todos os sintomas de um stresse agudo e teve de se tratar. "Não é nada agradável estar com uma pistola apontada à cabeça e as mãos amarradas atrás das costas." Quando foi libertada teve de assistir uma senhora com uma crise de pânico, mas só lhe caiu a ficha já em casa, ao ver na televisão que um dos assaltantes foi abatido por um sniper da polícia. "Aí é que entrei em terror absoluto. Comecei a suar e não dormi. Depois resolvi aquilo, que foi sonhar que estava a ser assaltada. O assalto era em minha casa, um sonho complicadíssimo que nunca mais acabava, estavam lá uns tipos e eu salvava a minha neta. Quando ganhei aos ladrões e consegui fugir com a neta, pensei 'já tenho isto resolvido'."

[citacao:Pessoalmente não gostaria de morrer a dormir. Gostaria de saber que morri!]

Há cerca de dois anos dedicou-se a outra paixão: a uma quinta que comprou no Alentejo, onde agora passa todos os fins de semana. "É uma ligação recente, nasci na Baixa, na Rua Ivens. O Alentejo tem um charme discreto, que não se consegue perceber. Quando estou na minha casa, parece Portugal no século XIX, aquelas paisagens das pinturas."

A esta paixão chama hobby, porque gosta do campo, da agricultura, de tratar da quinta, dos animais - só tem bichos com asas e gatos. "Estou a usar técnicas que têm que ver com a medicina, no sentido de que na natureza tudo é reaproveitado. Na quinta nada se deita fora. Introduzi esse esquema, com técnicas de permacultura. Trago para toda a gente excelentes ovos, legumes, fruta."

Esta ligação à terra deixa-a feliz, vê-se na forma como fala. As árvores, esses seres fantásticos, encantam-na e aposto que seria capaz de estar uma tarde inteira a falar delas. "Há árvores com mais de dois mil anos, há fungos com 2400 anos, não sei se são maiores do que a barreira de coral, mas são dos maiores seres vivos e dos mais antigos. Temos muito que aprender com essas formas de vida."
Tem 71 anos e continua a trabalhar todos os dias: de segunda a sexta dá consultas, ao fim de semana é mais trabalho intelectual. Quando fez 70, fez uma grande festa. "Não costumo ligar a essas coisas. Mas é um prazer chegar a esta idade. Sinto-me bem, acho que é porque respeito o meu corpo."

A ideia de se reformar não lhe passa pela cabeça. "Até que a voz me doa, como dizia a Amália. Enquanto tiver saúde e força não penso parar. Tenho imensos projetos, pessoas a quem estou a supervisionar doutoramentos. Sinto-me muito ativa do ponto de vista intelectual e isso é uma enorme alegria para mim."

Aproveito a entrada do maestro António Victorino de Almeida para lhe perguntar sobre música, mas não pega na minha deixa e começa a discorrer sobre aquele que é o seu bairro há alguns anos, onde vive e trabalha: "Campolide é um sítio engraçado. Há uns anos era uma minirrepresentação de Portugal em termos eleitorais. Tem uma certa aristocracia e classes mais baixas. É uma zona diferente de Campo de Ourique, aqui mesmo ao lado, não há aqueles restaurantes chiques. Ou como Alvalade..."

A Lisboa que cede aos turistas, que muitos dizem que está a perder identidade, é agora o tema da nossa conversa. Mas não tem uma visão catastrofista, aliás, o otimismo é uma marca do seu discurso. "Havemos de encontrar esse equilíbrio, os portugueses sempre souberam dar a volta. Olhe o exemplo político da geringonça. Arranjamos sempre uma geringonça."

A conta está paga e peço-lhe um último conselho para que os portugueses durmam bem, não sem antes a ouvir dizer que gosta do Ronaldo e do Mourinho, mas que detesta futebol e que o seu clube é sempre aquele que ganha a Jorge Jesus!

"Prezem o sono como a vossa maior riqueza. Porque se estragam o sono, estragam o corpo, e é com o corpo que vão viver a vida."

Galula
- 2 águas 0,5L
- 2 peixe espada preto
- 1 fatia de melão
- 1 café
Total: 19,35 euros

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