"Os nossos ricos são pouco dados à filantropia"

A socióloga Maria Filomena Mónica aponta no seu novo livro, Os Pobres, o dedo aos ricos portugueses no que respeita à manutenção da pobreza no país. E não só.
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Inesperadamente, Maria Filomena Mónica abandona temas que lhe são caros, como a literatura de Eça de Queiroz e Cesário Verde, para escrever um livro intitulado Os Pobres. Talvez um dos temas com que a sociedade portuguesa ainda convive bem em 2016, e uma situação que a intervenção recente da troika não resolveu, bem pelo contrário, ignorou e apoucou, segundo considera a investigadora. Entre os responsáveis por uma degradação social desnecessária mesmo num país da periferia da Europa estão vários setores da nossa sociedade, mas a socióloga destaca e critica o olhar para o lado habitual das elites e a repulsa dos empresários que teimam em não partilhar parte da sua fortuna em ações meritórias.

Entre as confissões da autora, está a de só ter reparado na existência de pobres quando foi aprender a fazer caridade. Um relato em tom pessoal, em contraponto com muitos dados estatísticos e uma radiografia das razões porque um país como Portugal ainda aceita a existência de condições de vida anormais entre grandes franjas da sua população sem que se verifique indignação por parte dos ricos, até dos remediados e das classes menos desprotegidas. Os Pobres é um relato atual, mesmo que com demasiadas décadas de existência segundo afirma a autora.

Começa por dizer que "Nunca passei fome", tal como os seus filhos e netos. É a pessoa ideal para investigar o tema da pobreza?

Não me cabe a mim, mas ao leitor, responder a essa pergunta. Mas recordo que quando nasci, em 1943, a taxa de analfabetismo era, em Portugal, de 50%, chegando nalguns distritos, como no Alentejo ou em Trás-os-Montes, a 80%. Não só esta gente, a da minha geração, não sabia ler nem escrever, como o seu quotidiano era ocupado a tentar sobreviver. É por isso que, ao contrário do que sucede nalguns países do norte da Europa, não temos memórias das classes trabalhadoras. Resta o facto de, por me ter doutorado em Sociologia, ter tido acesso a grande parte da bibliografia - boa e má - sobre a pobreza. A disciplina ajudou-me, segundo espero, a "olhar" o que me rodeia.

Surpreendeu-a o panorama que encontrou ou já tinha ouvido uns rumores da nossa tragédia social?

Note-se que eu "descobri" a pobreza, em 1959, quando, na companhia de meia dúzia de colegas e de duas freiras, fui levada a um bairro da lata, perto do colégio que então frequentava, a fim de aprender a exercer a "caridade". Curiosamente, em vez de ficar habilitada para esse exercício, saí de lá revoltada. Sentimento que nunca me abandonou. O meu percurso biográfico explica, em grande medida, o alheamento do mundo em geral e dos pobres em particular. Vivia entre a Rua Rodrigo da Fonseca, a Rua Braamcamp, a Rua Joaquim António de Aguar e a Rua Artilharia Um: o que estava fora deste quadrilátero não existia. Nunca tinha ido à Mouraria, ao Bairro Alto, a Alfama, nem, muito menos, à periferia da cidade.

Depois de um livro em que refletia sobre a Europa publica um novo intitulado Os Pobres. Neste estamos "bem" colocados nas grandes questões que afetam a União Europeia atual?

Não, não estamos, nem eu jamais pensaria - a não ser no dia 25 de Abril - que o pudéssemos estar. A nível europeu, Portugal sempre foi um dos mais pobres países e, ainda pior, aquele onde as desigualdades sociais sempre foram e são maiores. O que, como é evidente, não nos facilita o apego às liberdades.

Cita Samuel Johnson - "Uma adequada proteção dos pobres é o verdadeiro teste de uma civilização". Portugal passa no teste?

Não, não passa. Portugal não é, neste como noutros aspetos, um país civilizado. Lembro que o autor desta frase, o famoso Dr. Johnson, autor do primeiro grande Dicionário da Língua Inglesa, elaborado no XVIII, era um Tory (um conservador), não um radical.

Houve algum dado novo que a surpreendesse?

Talvez a insensibilidade, quer à direita quer à esquerda, perante os pobres, de que é exemplo máximo o caso do "João", um menor em risco vivendo numa aldeia da Beira, que assim permaneceu durante 14 anos, até a Casa do Gaiato, por mim contactada, resolver a sua situação em 48 horas.

E que a irritasse?

Algumas respostas de uma certa direita que ainda vive no Ancién Regime, ou seja, que ainda pensa que os pobres não têm as mesmas necessidades do que "nós", os abastados. A frase da menina Espírito Santo na herdade - hoje sabemos que falida - da Comporta ficou para a História. Para ela, era engraçado brincar aos pobrezinhos, como para Maria Antonieta era giro ocasionalmente andar vestida de camponesa.

Foi um livro escrito de supetão. Para criticar as elites?

Talvez pareça ter sido escrito à pressa, mas, se o fiz, foi por duas razões: por o assunto, até de forma inconsciente, estar dentro de mim há muito tempo, e por saber que não tenho muitos anos para viver. Aliás, a doença obrigou-me a passar mais tempo em casa do que era habitual e, nesse sentido, a ter possibilidade de escrever horas seguidas sem interrupções.

É mais fácil para quem se relaciona com Deus aceitar o desequilíbrio social?

Talvez, porque retiram do Evangelho a mais conhecida frase "Pobres, sempre os tereis entre vós", o que convida os ricos à caridade fútil e os pobres à resignação fatal. Lembro todavia que nos Evangelhos há muitas frases a criticar os ricos, coisa aliás que o atual Papa tem assinalado.

"Muitas foram as vezes em que tentei falar com os meus amigos sobre a a existência de pobres, mas estas conversas davam sempre para o torto." Os portugueses recusam radiografar-se?

Não sei se essa seria a razão. Mais forte, julgo, era a ausência de empatia perante quem sofre.

Faz um retrato dos pobres de outros países. O que destaca como semelhanças e diferenças?

Ao ler várias obras para a redação deste livro, notei que havia quatro tradições: a católica (Portugal), a jacobina (França), a aristocrática (Inglaterra) e a meritocrática (EUA). Nada é estanque, mas havia e há maneiras diferentes de olhar os pobres. E de nos indignar, como dizia Hannah Arendt. É verdade que a luta contra a pobreza não se faz apenas de sentimentos, mas não os podemos dispensar.

Ao fazer uma revisitação histórica ao problema nota um padrão nas atitudes que levam à manutenção de uma situação de degradação social periódica no nosso país?

Os pobres portugueses estão frequentemente em tal situação de miséria material e cultural que não têm capacidade de fazer ouvir a sua voz. Sempre foi assim e, de certa maneira, ainda o é. Realço, no entanto, que não concordo com a visão nostálgica daqueles que afirmam que "Dantes, era melhor". Não, não era. Só quem desconhece a História de Portugal ou está de má fé, pode dizer uma coisa destas.

A vinda de imigrantes de vários pontos do mundo mascarou a nossa realidade na pobreza?

Penso que não. Como somos um país pobre e com pouca oferta de emprego, não é atrativo. Quem deixa a África ou a Ásia e pretende vir para a Europa - e não estou a falar dos refugiados políticos - quer viver em Inglaterra ou na Alemanha, onde o nível de vida é mais elevado.

O empresariado português tem responsabilidades na existência de uma pobreza constante?

Até certo ponto sim. Mas não nos podemos esquecer do mal, que ele considerara uma benesse, que Salazar lhe fez, com o condicionamento industrial, uma redoma que o libertava da concorrência interna, e com pautas aduaneiras, que o protegia da externa. Com o 25 de Abril, apareceram novos empresários, mas a tradição de fazerem negociatas com o Estado permaneceu. O liberalismo económico só é bom para a retórica dos comícios. O fruto apetecível são as PPP.

Quais os partidos mais responsáveis pelo regresso maciço da pobreza a Portugal nesta década: os de direita (matriz social democrata) ou de esquerda?

Não tenho dados empíricos que me permitam fazer uma afirmação segura, mas está provado que, com a vinda da troika, em grande parte provocado pelos desvarios de um primeiro-ministro socialista, José Sócrates, os mais pobres foram os que mais sofreram.

Os sindicatos perderam uma oportunidade para alargarem a sua base social de apoio?

Os sindicatos ocupam-se de quem tem emprego: ora, grande parte dos pobres - não esquecer, no entanto, que há trabalhadores cujo salário não dá para alimentar a família - está fora do mundo do trabalho e são estes os que mais sofrem. A estes, só o Estado pode socorrer.

A Igreja tem tido um papel mais importante na resposta à pobreza que o Estado?

Mais uma vez não tenho dados empíricos para responder. Como os bens das congregações religiosas foram abolidos depois da Revolução Liberal de 1820 e como o Salazar, que ambicionava o poder indisputado, não quis dar à Igreja os meios que lhe permitissem outra autonomia, grande parte do que nós consideramos como papel da Igreja depende de subsídios estatais. Finalmente, os nossos ricos - excetuando Champalimaud - são pouco dados à filantropia, ou seja, àqueles contributos que se deixam após a morte, quando os próprios já não podem interferir na ações das fundações que criaram. Um outro exemplo, este estrangeiro, é o da Fundação Gulbenkian, uma das maiores da Europa e cuja sede é em Lisboa. Apesar do seu mau feitio, todos os dias agradeço ao sr. Calouste a bolsa de estudo que me foi dada, sem a qual eu teria sido diferente e pior.

Houve alguma acusação que tenha querido fazer neste livro e, para evitar problemas, tenha evitado apontar o dedo?

Não, caso contrário, não o teria escrito. Se tiver reações negativas, olho para o lado.

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