Os marchantes da Santa Casa
"De braço dado e certinhos/ Santa Casa e Santo António". De braço dado sim, mas certinhos nem todos, malgrado a canção que trauteiam: a três dias do desfile na Avenida da Liberdade e ao fim de mais de dois meses de ensaios diários, os marchantes da Santa Casa da Misericórdia de Lisboa ainda se desencontram. É normal: muitos não estão habituados a tanta atividade física e acertar os ritmos requer muita prática. Mas parecem bem divertidos, aqui no Pavilhão Vale Fundão, em Marvila, fresco apesar dos 26 graus de quinta-feira. E ansiosos pela grande noite em que, a seguir a outros dois grupos fora de concurso - o da Voz do Operário e o dos Mercados - entrarão no palco da avenida, sob os holofotes e as câmaras de TV.
"É capaz de ficar a pessoa mais nervosa, é capaz de ser mais difícil, por causa da TV e dessas coisas. Tenho um bocadinho de receio. De falhar, de as coisas correrem mal." Idálio Manuel Rodrigues, 60 anos, foi segurança e reformou-se em 2016 ("Estava no desemprego, os nervos acumularam-se, fui parar ao hospital e tive de me reformar"). Fala com timidez no início mas à medida que prossegue ganha confiança, sorri. Como com a marcha: a primeira vez que marchou em público foi a 4 de junho, no Meo Arena. "Senti um bocadinho de nervos mas depois passou. Acho que vai ser um bocadinho cansativo descer a avenida mas vai ser lindo. Cansativo mas lindo." É do bairro das Galinheiras, que nunca teve uma marcha sua, mas garante que sempre "achou graça" à iniciativa. "Às vezes ia ver lá, outras assistia pela TV. O meu bairro nunca teve, só o Lumiar, mas gosto, não se devem perder estes hábitos antigos, as tradições."
"Nesta idade ainda temos força"
A tradição das marchas de Lisboa, na verdade, tem só 85 anos, apenas mais 25 que Idálio, e com interrupções: surgiram em 1932, numa iniciativa do então diretor do DN e cineasta Leitão de Barros, grande amigo daquele que ficou conhecido como o propagandista de Salazar, António Ferro, e começaram por ser pensadas como um desfile de ranchos folclóricos associado aos santos populares, a decorrer no Capitólio. Dessa primeira vez, só três bairros concorreram: Alto do Pina, Bairro Alto e Campo de Ourique. E dois anos depois tiveram lugar a 10 de junho, frisando a ligação à ideologia do regime. Interrompidas durante a Segunda Guerra Mundial, regressam nos anos 50; em 1952 ocorrem pela primeira vez na Avenida da Liberdade. Com interregnos até 1963, sucedem todos os anos, com percursos e localizações diferentes, até 1970, quando entram em declínio. O 25 de abril extingue-as, mas regressam em 1980, mantendo-se até agora.
Mas para Idálio, como para a maioria dos que participam ou assistem, não é importante saber como nasceu a "tradição", com que fito e quão "genuína" é. "Fiz aqui amigos. Somos como uma família. Se houver oportunidade para o ano, cá estarei. Acho muito bem esta iniciativa da Misericórdia, para mostrar que há aqui pessoas que com esta idade ainda têm a força de vontade de mostrar o que valem."
Com esta idade. Gabriela Rosado tem 78 anos e está reformada do seu trabalho "de rececionista na hotelaria" há 12. Aos 66, portanto. Ninguém lhe dá os 78 anos, porém. À volta, há quem acuse o toque: "A mim não disse isso." Gabriela ri. Foi, conta, convidada para integrar o grupo, até porque é muito ativa e já participou nas marchas anteriores da instituição, organizadas internamente desde 2014, com desfiles na Mitra, no Beato. "Não dispenso a noite de Santo António e este ano vou fazer parte", comenta, com orgulho. "Acho isto ótimo e gosto de dar a minha contribuição. Não me cansa nada, mas claro que isso tem a ver com a condição física de cada um." Também não a afeta o público: "No Meo Arena não estava nervosa nem nada. Parecia que nem estava ninguém a ver, não me senti intimidada. Acho que isto é muito benéfico para quem participa, e é bom haver este convívio entre pessoas de vários centros."
São 17 os equipamentos representados pelos participantes; na maioria, os marchantes são frequentadores dos chamados "centros de dia", como é o caso de Gabriela e Idálio. A iniciativa da SCML, que além dos utentes inclui funcionários da instituição, o "cavalinho" (a banda de oito músicos que todas as marchas têm, de acordo com o regulamento), um ensaiador/coreógrafo (Paulo de Jesus, que ensaia também uma das marchas a concurso), os "arcos" e o guarda-roupa (de "época"), além de toda a logística implícita (transporte, alimentação, etc) está orçada em 40 mil euros, um valor que Sérgio Cintra reputa de "não importante", tendo em conta o orçamento global da ação social da instituição, 111,2 milhões de euros. E a ideia de que este acontecimento era desejado pelos utentes, apesar de o número de inscrições ser pequeno - 70 a 80 pessoas - face ao universo total de possíveis interessados (22 mil no global e seis mil nas "estruturas de proximidade"). O apuramento teve naturalmente em conta, explica o administrador, a mobilidade e as eventuais doenças que pudessem ser incompatíveis com tanta atividade física.
"Quando acabar vou ficar confuso"
Surpreendente então a quantidade de reformados por invalidez que aqui se encontram. Ana Maria Lopes, 57 anos, até ironiza: "Tome nota, que é a história mais linda que lhe vão contar hoje: tenho lúpus, faço hemodiálise, sou transplantada renal, fui operada no IPO a um cancro maligno no esófago. E tenho sempre febre." Reformada "há uns 20 anos", admite que se cansa "um bocadinho". Mas, conclui, "gosto muito de andar na marcha. Não tive oportunidade de nada, fui mãe muito cedo, não aproveitei nada a vida. Foi só sofrer." Ao lado, Cézar - "com Z", frisa - Freire, 58 anos, tem para a troca: "Tenho um problema no pé, cortaram-me quatro dedos porque gangrenaram." Mas não é isso que o impede de cumprir aquilo que garante ser "o meu sonho desde pequeno": "Descer a avenida." É, afiança, "dentro da cidade de Lisboa do que mais gosto. Não me cansa nada fazer isto e para a semana quando acabar até vou ficar confuso. Vou sentir a falta"
Talvez o único estrangeiro no grupo, Francisco Bastos, 56 anos, angolano, destaca-se pela altura e pela elegância. Normal: é bailarino profissional, fez parte da Companhia de Dança Contemporânea do seu país e em Portugal, onde está desde 1992, continuou a dançar sempre que para tal solicitado, apesar de ter vindo formar-se em informática, área em que trabalhou até reformar-se, há 16 anos, por invalidez (teve um AVC, explica). Naturalmente, não tem dificuldades de ritmo, coordenação ou acerto, mas diz estar a gostar muito da experiência. "É um trabalho de grupo e há muita gente, a maioria, sem experiência de dançar. É uma iniciativa muito boa para as pessoas se mexerem e conviverem, deviam fazer isto todos os anos."
João de Jesus Mendes concorda. "Não sei é se estou cá para o ano. Na minha idade é um dia de cada vez." E não é em todas? A noção é que varia; com 88, sendo decano do grupo, João de Jesus não se equivoca nesta coisa do tempus fugit. À pergunta sobre o que fazia profissionalmente, puxa do cartão de "polícia florestal de Monsanto", com farda e tudo. "Reformei-me em 1995. Tinha 65 anos. Estou a gostar do exercício, é uma coisa que nunca tinha feito. E conheci pessoas que nunca vi. Se calhar não volto a vê-las." Ri, aparentemente sem vocação para a mágoa. "Gostei muito de vestir a roupa e do ensaio no Meo Arena. Foram oito pessoas da minha família ver, filhos, netos... As Marchas são muito boas e a nossa é muito boa. Não vamos ser avaliados mas se fossemos talvez não ficássemos em último."