Cooperação, prevenção, investigação exaustiva e multidisciplinar das suspeitas. Depois do ano fatal de 2017, tem sido esta a estratégia das autoridades responsáveis pelo combate ao incendiarismo, e está a produzir resultados positivos. Se em quase duas décadas (entre 2001-2017), 57% da média das ocorrências ficou por investigar, nos últimos cinco anos apenas 8,06% delas escapou ao crivo da PJ. Ainda que considerados intervalos temporais diferentes, estes dados revelam uma tendência, ajudando à obtenção de prova material mais consistente - logo, mais detenções, mais prisões preventivas, mais probabilidade de prisão efetiva-, dando assim boas indicações para o futuro..Apesar de baixas taxas de aplicação da prisão preventiva e de condenação a prisão efetiva - veja-se o ano de 2020: de acordo com as Estatísticas da Justiça, dos 5908 casos de fogo criminoso rural, apenas 5% resultaram em detenção ou prisão -, nunca tantos incendiários estiveram privados de liberdade. Setenta e quatro pessoas estão atualmente presas ou detidas à ordem de processos por crimes de incêndios florestais, informou a Direção-Geral de Reinserção e Serviços Prisionais (DGRSP) no passado mês de agosto..Rita Alarcão Júdice, ministra da Justiça, adiantou no Parlamento os números de setembro: 24 pessoas detidas, 80% das quais ficaram em prisão preventiva, suspeitas de terem ateado os incêndios que alastraram este mês nas regiões Norte e Centro do país..Cercado pelo impacto da tragédia, na altura de proporções imprevisíveis devido a condições meteorológicas extremas, Luís Montenegro traçou a negro uma linha de nexo entre ignições e interesses económicos. “Há (interesses) que sobrevoam estas ocorrências”, afirmou ao país. Sem concretizar..Portugal é pioneiro europeu na investigação das causas dos incêndios. Estava-se em finais dos Anos 80, inícios da década de 90. Com inspiração no trabalho realizado nos Estados Unidos, especialistas em florestas e inspetores da Polícia Judiciária importaram e adaptaram as primeiras metodologias de investigação, ganhando avanço a congéneres europeus, aos quais chegaram a dar formação. Em cerca de duas décadas e meia, raramente encontraram conexão entre incendiarismo e associação criminosa..Rui Leitão /DN.Solitários ou associação criminosa?.“Em mais de 20 anos de carreira, encontrei um único caso - um miúdo, em Tábua, que recebeu 5 contos de um madeireiro para atear um fogo”, diz ao DN um dos homens do terreno, com centenas de casos investigados. Recorda ainda o eletricista de 29 anos, acusado, em 2021, de atear 62 incêndios no Distrito do Porto, mais tarde condenado a seis anos de prisão. “Dizia-se à boca cheia que o rapaz estava ligado aos madeireiros. Mas mal foi preso, as ignições pararam”, diz, para concluir: “Se houvesse mandantes, os fogos continuariam. Pagariam a outro.”.De acordo com especialistas, apenas as madeireiras sem produção própria poderiam ter algum interesse nos fogos. São 3%. “E, mesmo nessas, nunca foi encontrada uma associação direta”, diz o investigador..Manuel Rainha é especialista em incêndios florestais e referência no conhecimento das florestas. “Sempre que há crises, explora-se o filão. Mas é preciso perceber que os incêndios penalizam os empresários da madeira. A falta de madeira é tão grande, que os incêndios vêm criar uma disrupção no mercado de abastecimento, abalando os alicerces da indústria”, diz, recordando que a CELPA, associação de empresas da pasta e do papel “gasta milhares de euros” por ano para proteger as matas..“É de uma total irracionalidade pensar-se que há interesse. A partir do momento em que arde, a madeira tem uma depreciação, deixando de servir para os fins mais nobres.”.Porém, há incendiários que agem por motivos instrumentais e estes perfis estão identificados. “É evidente que alguns agem por interesses económicos pessoais e particulares - desmatamento, renovação de pastagens, etc., mas fazem-no por conta própria. Não enquanto executantes de ordens”, conta o especialista..Sem prejuízo de motivações múltiplas e sobrepostas para atear fogo, e ainda que estudos destaquem um propósito instrumental - ganhos financeiros ou outros -, o incendiarismo em áreas rurais é tipicamente associado a motivos psicológicos, e não a recompensas materiais ou políticas, dizem os estudos..Rui Leitão / DN.Quem são eles?.Os incendiários distinguem-se de outros infratores por várias características de funcionamento psicológico. Estudos revelam que a história psiquiátrica/transtorno mental “está presente de forma desproporcional em incendiários por comparação com outros infratores”. Dificuldades de aprendizagem e esquizofrenia são dois dos transtornos mentais mais predominantes, altamente associados ao alcoolismo comórbido, sobretudo nos reincidentes. O abuso de substâncias é considerado um dos maiores fatores de risco para incêndio criminoso..Maioritariamente do sexo masculino, podem agir motivados por raiva, vingança, problemas familiares; na procura de benefícios e recompensas materiais; incentivados pela atração pelo fogo; por excitação, prazer e/ou busca de atenção..Onde mora? Trabalha? Onde fica o local de trabalho? - que importância podem ter estas perguntas nos resultados das investigações? “Se os criminosos iniciarem incêndios perto dos locais de residência ou trabalho, é possível que, em alguns casos, o incêndio tenha sido provocado durante o horário de trabalho..Por outro lado, a acessibilidade à área-alvo é maior, podendo supor-se que os incendiários rurais, que são trabalhadores agrícolas ou florestais, correm maior risco de atear fogo, especialmente durante o horário de trabalho, se comparados com incendiários com outras ocupações”, defendem alguns estudos..Estas e outras perguntas fazem parte da Lista de Verificação de Fatores de Risco de Reincidência de Incêndio Criminoso Rural. Trata-se de uma lista de verificação de múltipla escolha, com 23 variáveis destinadas a auxiliar os agentes na recolha de informações sobre incendiários rurais. Está dividida em quatro secções - características sociodemográficas (por exemplo, sexo, idade); características psicossociais (integração comunitária e familiar e presença de problemas de consumo de álcool/problemas de saúde mental); comportamento criminoso (antecedentes criminais, relação com o proprietário do imóvel rural); e características da cena do crime (por exemplo, tipo de área rural queimada, tipo de ignição) - e tem permitido traçar e referenciar o perfil de mais de 800 incendiários, ajudando na avaliação das reincidências e a uma monitorização mais eficaz..Rui Leitão / DN.Não há um perfil, há vários.Homem, solteiro, desempregado, perturbado, iletrado, com problemas de alcoolismo, são traços comummente associados ao perfil do incendiário. Porém, num dos estudos mais recentes sobre a matéria, publicado em fevereiro de 2024, a investigadora e psicóloga forense Cristina Soeiro acrescenta novo conhecimento às características dos incendiários rurais portugueses, com base numa amostra que incluiu 450 detidos pela Polícia Judiciária portuguesa entre 2015 e 2020..Em comparação com a literatura anterior, verifica-se uma maioria de idosos, em situação de emprego (54%), principalmente agrícola, florestal ou em ofícios relacionados com o artesanato. E a ausência de antecedentes criminais (66%). Mais de 70% dos incendiários rurais estudados iniciaram incêndios perto de casa ou do trabalho e, por isso, “é possível que, em alguns casos, o incêndio tenha sido provocado durante o horário de trabalho”, diz o artigo. Sobretudo homens, a maioria apresenta problemas de saúde mental ou de álcool. Quase metade da amostra consome substâncias de uso abusivo no momento do crime (principalmente álcool). Tendem a viver com as suas famílias, e um pequeno número tem dificuldades conhecidas de integração na comunidade..Maioritariamente, afirmam ter agido por raiva ou vingança, (denominado no estudo por motivação expressiva), apesar de metade deles desconhecer o dono da propriedade que incendiaram. A maioria dos infratores ateou fogo sozinho, sobretudo em dias úteis e com uma simples ignição (isqueiros, velas, fósforos). Após atear o fogo, a maioria abandonou o local e, quando questionado, confessou o crime..Heterogeneidade.Os resultados indicam que 61% dos incendiários rurais da amostra tem problemas de saúde mental e álcool. No entanto, um dos principais achados deste estudo da Cristina Soeiro é a heterogeneidade das características, representada na análise científica da especialista por três grupos distintos, de acordo com estas variáveis: saúde mental (39%), consumo de álcool (38%) motivação instrumental (23%)..No primeiro grupo, é referenciada a depressão, esquizofrenia, transtorno de personalidade, comprometimento cognitivo ou outros problemas. São jovens, moram com os pais, estão sem emprego e têm um nível de ensino médio superior ao dos grupos restantes. A motivação relatada foi a raiva/vingança..O segundo grupo com maior prevalência, reforça que os incendiários rurais com problemas de álcool partilham motivações com os do primeiro grupo - raiva/vingança - para atear fogo e que o uso indevido do álcool é fator de risco cada vez maior na prática do crime. Quer entendido apenas como consumo no momento da ignição - a grande maioria desse grupo relatou consumo de álcool no momento da ofensa, reforçando o efeito desinibidor do álcool sobre o comportamento deliberado de incêndio -, quer quanto à existência de uma adição..Com idades entre 40 e 59 anos, grande parte vive sozinho, apresenta baixa escolaridade (no nível do ensino fundamental) ou nenhuma qualificação, e está em situação de desemprego..No último grupo, representado por aqueles que ateiam fogo motivados por ganhos materiais ou recompensas, a caracterização difere substancialmente dos outros dois: moram com a família, exercem atividades relacionadas com agricultura ou silvicultura, não relatam problemas de saúde mental nem abuso de álcool, sugerindo uma melhor integração na comunidade. São maioritariamente homens entre os 40 e os 59 anos, solteiros, com baixos níveis de escolaridade..Menos ignições criminosas, mais área ardida por incendiarismo. Entre 2018 e 2023, o incendiarismo é responsável por mais de metade da média de área ardida nesse período: 59% Não será alheio a este facto a redução do número de incêndios causados por queimas e queimadas (uso do fogo), que representam apenas 18% do total da área ardida. Julho, agosto e setembro são meses críticos. “O aumento do incendiarismo no verão tem razões muito simples. Condições meteorológicas favoráveis permitem aos agressores cumprirem os objetivos: pouco esforço, poucas ignições, e, portanto, pouco risco, grande probabilidade de uma enorme área ardida”, diz Manuel Rainha, especialista em fogos florestais..Ao mesmo tempo, relatórios do Instituto da Conservação da Natureza e das Florestas, da GNR e da Agência para a Gestão Integrada de Fogos Rurais dão conta de uma diminuição acentuada, e numa tendência consistente, do número de ignições por uso do fogo e incendiarismo para o período que vai de 2018 a 2023, o que indica uma melhoria da perceção do risco por parte da população e mais eficácia das polícias..No ano passado, foram registados 7523 incêndios rurais, o número mais baixo na análise à serie desde 2001. Esta evolução reflete a tendência positiva de redução, apesar do aumento do número de dias de maior severidade meteorológica (em 2023 foram 63 e em 2022 foram 60). O Relatório Anual da Segurança Interna de 2023 especifica: “O crime de incendiarismo/fogo posto em florestas, matas, arvoredo ou searas, regista 5325 ocorrências, correspondendo a uma descida de 25,7%, em relação ao ano anterior”, sendo Porto, Braga e Viana do Castelo os distritos que apresentaram mais incidência de participações criminais..Ocorrências criminosas que são as mais baixas dos últimos 17 anos, com exceção para 2014, um ano particularmente chuvoso, e que correspondem a 31% dos incêndios de 2023 (tidas em conta as ocorrências investigadas com causa identificada)..Analisando apenas os meses de verão (julho, agosto e setembro), quando tradicionalmente o risco de incêndio é mais elevado, observou-se, em média, uma queda de 50% do número de ocorrências. Porém, no que ao incendiarismo diz respeito, cumpriu-se a tendência: a maioria das ignições teve mão criminosa. .Nestes meses estivais, os incêndios com causas intencionais representam agora 50% do total - no período de 2018-2023 - contra 46% no período de 2009-2017. São a causa com maior impacto na área ardida, com peso relativo crescente dada a diminuição dos impactos provocados pelas restantes causas..Videovigilância: ver sem ser visto.Objetivo primeiro do combate aos incêndios: afastar os agressores das florestas durante o verão. “Retirá-los mesmo da circulação”, acrescenta um dos investigadores que há mais anos está no terreno..Com o objetivo de aumentar a eficácia na investigação e apuramento de causas e garantir uma maior vigilância, em 2018 foram criados dois grupos de trabalho, compostos por elementos da PJ, GNR e do ICNF, que atuam na zona Norte e Centro em ligação próxima com as municipalidades, brigadas distritais de bombeiros e populações..Estes são os resultados operacionais de 2023: 1072 incêndios investigados; 172 territórios de elevado nível de causalidade investigados; 40 ações de esclarecimento sobre o uso do fogo realizadas; 43 ações de sensibilização dirigidas à população em geral realizadas; 54 estudos e/ou recomendações sobre prevenção de ignições produzidos; e 36 ações de formação ministradas..Ainda no ano passado, a GNR dispôs de 158 câmaras que cobrem cerca de 6,3 milhões de hectares do território continental, guarneceu 230 postos de vigia e patrulhou 3 544 876km, coordenados e apoiados por meios aéreos com meios tripulados e não-tripulados, que permitiram a deteção precoce e a identificação precisa das ignições, garantindo um célere despacho de meios de supressão e apoio à investigação..“Trata-se de um crime em que é muito difícil encontrar prova material e prova testemunhal. Por isso, desenvolveu-se o seguimento de perto dos suspeitos, tentando apanhar essas pessoas em flagrante delito, única maneira de conseguir de um juiz um decreto de prisão preventiva”, diz um dos homens do terreno..A plataforma eletrónica “DIVDIR” na qual são monitorizados todos os alertas detetados, registou 1616 alertas emanados pela vigilância fixa, 601 por intermédio de vigilância móvel, 40 por via de vigilância aérea e 6174 decorrentes de populares..Resultado: uma taxa de investigação de 96% dos 7523 incêndios, com 7203 investigações, acima da meta estabelecida para o ano, tendo sido possível identificar a causa em 4888 situações - 65% do total de incêndios..“O que importa é tirar aquelas pessoas de circulação nos meses de verão”, repete quem anda no terreno, dando conta do trabalho diferenciado que está a ser feito..O ‘todo’ de que falou Montenegro.“Antigamente as ignições eram avaliadas isoladamente e conforme surgiam iam sendo ‘entregues’ a um investigador diferente, tornando mais difícil o estabelecimento de conexões. Agora, há uma ação desenvolvida desde a época baixa, de maneira a preparar os meses mais perigosos, analisando as ignições como um todo”, dizem os intervenientes no combate ao incendiarismo..Estudam-se as ignições e as pessoas, “num trabalho diário de vigilância e monitorização”. Traçam-se perfis. “O incendiarismo não acontece apenas no verão. Em 2022, surgiram várias ignições, aparentemente desconexas, que foram inicialmente atribuídas a queimadas por razões de caça. Ao fim de algum tempo de estudo, percebemos que se tratava de um incendiário, um indivíduo fugaz, bombeiro, que acabaria preso em julho de 2023”, ilustra um dos investigadores..Relatada tem sido a maior sofisticação dos incendiários. Trata-se de uma pequena minoria, dizem os especialistas. “A chama direta - isqueiro e a vela - continuam a ser os mais usados. Não é preciso ser muito inteligente para perceber que se estiver vento basta um fósforo.”.O quadro anterior aos incêndios de setembro era animador. Menos fogos, menos incendiários detidos em relação ao mesmo período do ano anterior, mas mais suspeitos. Cerca de 40 pessoas em prisão preventiva, alguns deles reincidentes..Na sombra, as equipas especiais mantêm reuniões regulares com os municípios e com as brigadas de incêndios distritais. Utilizam carros de sapadores, disfarçados. Querem ver, mas não podem ser vistos.