"Os cuidados paliativos não encurtam a vida, pelo contrário dão-lhe mais qualidade"

Do que se fala, quando se fala de cuidados paliativos? A médica Isabel Galriça Neto, pioneira na área e quase com 30 anos de experiência, explica-nos no livro Da Ciência, do Amor e do Valor da Vida - Relatos e Padrões da Identidade dos Cuidados Paliativos. Uma obra que surgiu da responsabilidade que sente, mas também de um desafio e vontade, esperando que esta aumente a literacia sobre o tema. Ao longo das páginas, conta histórias, com rostos e nomes, fundamentadas na ciência, e que, ao mesmo tempo, desmontam mitos e preconceitos.
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Criou a primeira unidade de cuidados paliativos no Serviço Nacional de Saúde, há quase 30 anos, mas há 15 foi criar e liderar a unidade do Hospital da Luz, o que a levou a avançar com uma obra sobre estes cuidados. Foi uma necessidade, um desafio ou um alerta para a realidade?
Foi tudo junto. Foi o sentir que tinha uma responsabilidade, mas também a vontade e o desejo de dar voz a um grupo de pessoas, que, na maioria das vezes, não a têm, ou que quase são silenciadas, porque têm doenças graves e incuráveis e sabem que virão a morrer por via disso. Digo isto porquê? Porque a sociedade atual, de alguma forma, pretende esconder esta realidade, lida com ela como se quase não existisse. E, depois de ter o privilégio de tratar alguns milhares de pessoas e de todo o património individual que isto representa, sem qualquer tipo de messianismo, senti que tinha a responsabilidade, mas também a vontade e o desejo, de contar para fora o que é a realidade dos cuidados paliativos.

Acha que a população tem a ideia errada do que são estes cuidados?
Há muitos portugueses, e isto está provado com estudos e dados, que não sabem o que são cuidados paliativos, e muitos dos que dizem saber, têm uma ideia enviesada e até preconceituosa. Por exemplo, a nós profissionais, é comum perguntarem-nos como somos capazes de trabalhar esta área da medicina, dizendo-nos mesmo: "Isso deve ser horrível" ou que "já nada há a fazer pelas pessoas", e não é assim. Quem trabalha nesta área sabe que isto é falso e foi precisamente esta realidade, ou este mundo, que quis desvendar e trazer para a população em geral, contando-a através de histórias, que representam padrões, e do que nos diz a ciência.

CitaçãocitacaoÉ preciso que as pessoas saibam que numa fase de vivência de doenças mais graves a vida continua a ter valor e sentido. E foram as pessoas que tratei que me ensinaram isto.

É um livro para o grande o público, e não para doentes e profissionais?
O livro está escrito para o grande público, para que alguns se possam conhecer e reconhecer a realidade que as suas famílias já tenham vivido, mas também para os profissionais, para que todos saibam que o mundo dos cuidados paliativos não é o de um sofrimento atroz ou que é um mundo em que todas as pessoas estão condenadas a algo "enorme", de que não se fala. O livro não tem uma linguagem hermética e parte de histórias, da minha própria experiência e de como vim aqui parar, e de histórias de doentes, para mostrar que o trabalho que se faz, faz-se fundamentado na ciência, com rigor, com técnica, mas também com amor, no sentido de um compromisso e de ajuda aos outros. É preciso que as pessoas saibam que numa fase de vivência de doenças mais graves a vida continua a ter valor e sentido. E foram as pessoas que tratei que me ensinaram isto.

Falou numa realidade escondida, de que não se fala, o que quer dizer concretamente?
É uma realidade escondida sim, porque o que se sabe é que só 30% dos portugueses que precisam de cuidados paliativos, e são dezenas de milhares, é que os recebem. Muitas das pessoas que passam pela experiência acabam por falar sobre o que viveram, mas como são poucos os que recebem estes cuidados precisamos que muitos mais os recebam para que haja um passa palavra mais eficiente, porque o falar-se pouco e o mostrar-se pouco a realidade dos paliativos reflete ainda mais os preconceitos e os mitos que existem em relação a este lado da medicina. Se calhar, é por isto também que temos de continuara a ter o Mês de Outubro (mês em que se assinala o cancro da mama) ou o Dia Mundial dos Cuidados Paliativos (que costuma ser assinalado no segundo sábado de outubro).

Os mitos e os preconceitos de que fala vêm da sociedade em geral?
Claro. Até do ponto de vista mediático, e se compararmos com outras tantas realidades, a dos cuidados paliativos é das mais difíceis de abordar, porque continua a ser considerada uma realidade que pode assustar as pessoas. Portanto, é melhor não se abordar, quando, basicamente, estamos a falar de uma realidade que tem a ver com a doença, com a incurabilidade e com a morte, que, ao fim e ao cabo, é uma realidade e uma inevitabilidade para todos. Só que o nosso comportamento enquanto sociedade é fazer como a avestruz, colocar a cabeça debaixo da areia e não falar de algo que, afinal, é inevitável. Tudo isto tem muito pouco de racional e não nos ajuda como sociedade.

Citaçãocitacao"Ainda existem muitos profissionais de saúde que não sabem reconhecer as situações em que há necessidade e benefício dos cuidados paliativos - o que é precisamente o contrário das recomendações da OMS".

Terá a ver também com a ideia de que a medicina em pleno século XXI tudo cura?
Também tem a ver com essa ideia, com a ideia da medicina triunfalista, de que todos se curam. Isto é uma ilusão. A morte é uma inevitabilidade. Portanto, é preciso que as doenças que levam à morte sejam devidamente acompanhadas. E esta é uma realidade que deve ser bem conhecida para que as pessoas que dela necessitam se aproximem e descubram que, afinal, até conseguem viver melhor. Os doentes dizem-me com muita frequência, e nós profissionais sabemos que é assim, que quem passa por fases de doença grave ou de fim de vida devidamente enquadrado e apoiado dá valor à vida, passa até a vê-la de outra forma, reequacionando valores e prioridades. Os doentes dizem-nos isto, mas também está demonstrado em estudos. Hoje, sabemos que, numa fase destas, pode haver crescimento, amadurecimento e alargamento de horizontes, ainda que as pessoas não se curem.

Os cuidados paliativos não são só para situações de fim de vida?
O que está consensualizado cientificamente nesta área é que o fim de vida corresponde aos últimos 12 meses de vida de um doente e que o final de vida são as últimas semanas ou dias. Ou seja, a ideia de que os cuidados paliativos são só para o final de vida parte do desconhecimento e do preconceito. Há muitos doentes que dizem: "Não quero ir para os cuidados paliativos senão morro mais cedo" ou que "não quero ir porque ainda é cedo", quando têm uma doença grave, que irá avançar e é irreversível. Estas crenças estão erradas e têm levado a que muitas pessoas, numa fase de doença grave e avançada, mas não necessariamente no final de vida, não sejam ajudadas a viver em condições mais dignas. É muito importante explicar às pessoas que a ciência mostra que os cuidados paliativos não encurtam a vida, pelo contrário dão-lhe mais qualidade e até quantidade. Perante isto, questiono-me porque é que as pessoas querem continuar a ignorar esta realidade que tem evidência cientifica? E esta é uma das coisas que comento no livro, porque a evidência cientifica demonstra que os cuidados paliativos têm resultados muito positivos perante, e volto a insistir, uma inevitabilidade. Não curamos, mas cuidamos de maneira a que as pessoas tenham muito mais qualidade de vida.

Mas estes cuidados podem ser prestados em que situações?
Em primeiro lugar, é preciso dizer que estes cuidados se destinam a pessoas de todas as idades - a faixa pediátrica até é a área que está mais a descoberto - e com todo o tipo de doença, desde que sejam graves coloquem a vida em risco, que sejam progressivas e irreversíveis, independentemente do prognóstico e de a pessoa até poder ter anos de vida. Mas o que acontece habitualmente é que quando se fala em paliativos se pensa logo em cancro, embora se deva pensar também em situações de AVC, de demência e de insuficiência cardíaca, em doenças neurológicas degenerativas, como a Esclerose Lateral Amiotrófica.

Citaçãocitacao"Só 30% dos portugueses que precisam de cuidados paliativos, e são algumas dezenas de milhares, é que os recebem (...)". "Os cuidados paliativos são hoje um complemento obrigatório do sistema de saúde moderno".

Referiu que só 30% dos portugueses que precisam deste tipo de cuidado é que os recebem, porquê?
Poderiam ser prestados a muitos mais, mas não são porque, em primeiro lugar, ainda existem muitos profissionais de saúde que não sabem reconhecer as situações em que há necessidade e benefício dos cuidados paliativos - o que é precisamente o contrário das recomendações da OMS e de outras entidades, que vão no sentido que quando se tem uma doença grave e incurável é melhor, em termos de resultados, procurar os cuidados paliativos mais cedo do que mais tarde, quando a doença já está muito avançada. Por outro lado, temos profissionais que não referenciam os doentes porque acham que os cuidados paliativos são um falhanço da medicina. O que é falso. Os cuidados paliativos, perante a inevitabilidade da morte, são hoje um complemento obrigatório do sistema de saúde moderno. Em segundo lugar, porque são cuidados que não são obrigatórios e porque ainda não há capacidade de resposta. Em terceiro, porque a sociedade no seu todo continua a ter muitos medos e prefere uma atitude de avestruz do que uma atitude informada, ponderada e mais racional, que é, e usando uma metáfora: "Se vem um aí um furacão, que nos preparemos para ele". Os cuidados paliativos são um direito humano e constitucional, o de ter acesso à saúde em qualquer fase da doença. E preocupa-me que este esteja a ser atirado para debaixo do tapete. É isto também que procuro com o meu livro, aumentar a literacia sobre os paliativos.

No livro conta várias histórias, mas que padrões é que estas tentam traduzir?
Só o falar sobre isto evoca em mim uma emoção intensa, porque são histórias que têm rostos, nomes (embora fictícios para salvaguardar a privacidade), que têm um tempo, aquele em que as vivi, mas sei que, ao mesmo tempo, não é mau ter estas emoções, porque, por um lado, aprendi e sinto que sou uma privilegiada, porque estas pessoas confiaram em mim permitindo-me partilhar pedaços da sua vida.

CitaçãocitacaoA pessoa não é derrotada pela doença. Esta visão bélica de que os tratamentos contra a doença são uma guerra, um combate, e que há uns que saem vencedores e outros, os que morrem, são derrotados é qualquer coisa que não tem utilidade nem corresponde à realidade.

Cada história é resumida numa frase, quer falar de alguma em especial?
Resumi cada história com uma frase, porque, para nós, que trabalhamos nos paliativos, há frases que são evocativas de padrões. Numa das histórias falo de uma pessoa que me disse que "perdeu a batalha contra o cancro". E isto é uma coisa que me incomoda profundamente, mas tem a ver com uma ideia subjacente passada tantas vezes pela comunicação social de que quando se fala de cancro a pessoa foi derrotada pela doença. A pessoa não é derrotada pela doença. Esta visão bélica de que os tratamentos contra a doença são uma guerra, um combate, e que há uns que saem vencedores e outros, os que morrem, são derrotados é qualquer coisa que não tem utilidade nem corresponde à realidade. Trabalho com pessoas que são imensamente lutadoras, ainda que não se curem. A cura não é uma questão de vontade, não é uma questão de que os bons curam-se, e os maus não. Aliás, tenho de dizer: "Gostava que a comunicação social deixasse de dizer que quem morreu foi derrotado pela doença, quando se referem a situações de cancro. Não vemos notícias a dizerem, quando alguém morre, que foi derrotado pela demência. E esta história tem a ver com este padrão e que eu pretendo desmontar. Tenho outra história de alguém que afirma: "Este já não é o meu pai", referindo-se à demência. Ouvimos esta frase com muita frequência, mas é preciso afirmar que aquela pessoa é a que se conhece, mas com outra roupagem, com outra história. Costumo dizer que as árvores são árvores, com ou sem folhas. Outra frase que se ouve com muita frequência é: "Se eu soubesse o que sei hoje". E escolhi esta história para que as pessoas que estão de boa saúde fiquem a saber o que aquelas que passaram a ter pouca saúde nos querem dizer sobre o que é verdadeiramente importante na vida. "Se eu soubesse o que eu sei hoje" fala-nos do que chamamos arrependimentos de fim de vida, das decisões que se teriam tomado, como trabalhar menos, estar mais tempo com a família, fazer mais coisas que fossem desafios, etc. É uma história que pretende dizer aos outros "isto é aquilo que quero que saibam. É para isto que se devem preparar".

De todas estas há alguma que lhe tenha tocado mais?
Há uma, das mais recentes e que para mim, como médica, mulher e mãe foi muito intensa. É a que sintetizo com a frase: "Está a sofrer tanto". É a história de uma mulher, de 30 e poucos anos, com uma doença neurológica degenerativa, que veio a cegar e a deixar de ouvir. Uma mulher fortíssima, uma heroína, que foi para os cuidados paliativos referenciada pelos seus médicos e por uma amiga enfermeira que a certa altura lhe disse: "O que tu precisas é de cuidados paliativos" e esta mulher aceitou e acabou por ter um fim de vida com qualidade. Só por desconhecimento é que se pode achar o contrário. Falamos muitas vezes na fita do tempo e se formos ver a fita do tempo de fim de vida destas pessoas, não quer dizer que elas tenham de estar o tempo todo, 12 meses ou mais, internadas. De maneira nenhuma. Aliás, 60% dos nossos doentes acabam por ter alta. As pessoas não vão para os paliativos para ficarem ali e morrerem.

60% dos doentes tem alta?
Isso na minha unidade, não quer dizer que seja assim em todas, depende das realidades e do tipo de doentes. O que posso dizer, e isto está demonstrado internacionalmente, não interessa que seja em Portugal ou no Reino Unido, é que se os doentes forem referenciados e enviados para os paliativos no tempo certo, têm alta. Não se curam, mas podem viver mais meses, alguns mais anos até, sendo acompanhados em consulta externa, o que muitos não sabem sequer que existe.

Ao fim destes anos, já é mais fácil, se assim se pode dizer, lidar com estas situações?
Não é mais fácil. Se fosse, significava que eu não me comprometia e nem me empenhava. E não sou capaz de trabalhar assim. Nem quero. Isso seria insensibilizar-me ou banalizar-me. O que sinto é que estou mais preparada. É um trabalho exigente, tal como outros, e é necessário prepararmo-nos para o fazermos com ciência, técnica, amor e humanismo. Não gosto sequer da expressão "já ganhaste caule". Não quero ganhar caule, se ganhar significa que estou a afastar-me das pessoas e que estou menos próxima da realidade do sofrimento. E ao fim de 27 anos ainda há histórias que me continuam a surpreender.

O que se pode esperar para o futuro e o que deseja para os cuidados paliativos?
O meu desejo é o de que, no futuro, se tenha a noção de que os cuidados paliativos são um direito humano, devendo ser de acesso universal a todos os portugueses, o que, infelizmente, ainda não acontece. Que todos os profissionais de saúde tenham formação básica nesta área para que se sintam minimamente capacitados para apoiar os seus doentes, sabendo que existem equipas especializadas diferenciadas para apoiar os casos mais complexos. Volto a dizer: é importante que se inclua a morte e o fim de vida nas nossas conversas, na nossa realidade. Isso só nos torna mais humanos, mais solidários e permite-nos viver melhor. Sobre o que nos espera, sinto grande apreensão. Estamos a viver uma fase em que a prioridade, do ponto de vista legislativo e de meios, está a ser dada à morte a pedido, o que me preocupa muito, porque os que estão em sofrimento e querem viver com mais qualidade ainda não têm acesso aos cuidados paliativos. Para mim, isto é chocante e nada tem a ver com o que se quer de um país moderno ou desenvolvido.

anamafaldainacio@dn.pt

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