Ao todo, e contando entre o número de candidatos (2432) à prova de acesso para o internato da especialidade, a iniciar em janeiro de 2025, e o número de vagas ocupadas (1860), houve 572 que optaram por não escolher uma única vaga para continuarem a sua formação. O número assustou as estruturas representativas da classe, nomeadamente a Ordem dos Médicos, que já enviou um questionário a todos os candidatos deste ano, convocando-os também para uma reunião presencial, que deverá decorrer na próxima semana. O objetivo é perceber as razões que pesaram nas escolhas, ou não, de uma especialidade. Os resultados do concurso, que terminou há uma semana, foram divulgados pela Administração Central do Sistema de Saúde (ACSS) na quarta-feira e revelavam que dos 2432 candidatos a fazer exame para as 2167 vagas disponíveis, só 1860 é que escolheram uma. Ou seja, não só ficaram 307 vagas vazias, como 572 candidatos preferiram não escolher nenhuma..Os alarmes soaram na Ordem dos Médicos, a quem compete a alteração das regras do internato, mas este trabalho já estava a ser feito, confirmou ao DN o bastonário, Carlos Cortes, só que agora impõem-se mais medidas e ouvir os candidatos. “Recentemente criámos um grupo de trabalho para preparar alterações ao internato médico. A sr.ª ministra da Saúde tinha-nos pedido que fosse feita a adaptação do regulamento à nova orgânica do Serviço Nacional de Saúde (SNS), que antes assentava em Administrações Regionais de Saúde (ARS) e agora assenta em Unidades Locais de Saúde. Portanto, eram precisos novos diplomas legislativos que regularizassem a situação dos internos e o seu funcionamento nestas estruturas. E a nossa intenção já era alterar algumas regras de forma a tornar o internato mais atrativo, mas agora tem mesmo de ser”, explicou..Carlos Cortes assume ao DN que a intenção inicial da Ordem era entregar esta proposta de revisão à tutela até ao final do ano - e “queremos cumprir esse prazo” -, mas “queremos também ouvir os candidatos deste ano para percebermos os motivos que pesaram nas suas opções”. “O que os está a afastar das especialidades no SNS?”, questiona. Para já, diz, “a Ordem está a trabalhar num novo modelo de avaliação do internato e em algumas regras que, acreditamos, irão permitir que se torne mais flexível e atrativo para os jovens médicos”..O bastonário reforça que o número elevado de médicos que não querem prosseguir com a formação especializada, preferindo ficar a trabalhar como tarefeiros (à hora) - o que lhes permite gerir a sua agenda de trabalho, ou ir exercer, mesmo sem especialização, para os setores privados e social - ou até mesmo emigrar, para fazer a especialidade no estrangeiro, é motivo suficiente para se repensar a formação. Mas também é preciso não esquecer que as condições de trabalho no SNS podem estar a contribuir para esta realidade, que “pode colocar em causa a sustentabilidade do serviço público”..Os dois sindicatos da classe disseram ao DN concordar com mudanças no internato. Aliás, referem ter apresentado já propostas de alteração a várias tutelas, mas o tema ficou sem discussão e sem medidas. Quanto aos que ainda estudam para serem médicos, a presidente da Associação Nacional dos Estudantes de Medicina (ANEM), Rita Ribeiro, sublinha ao DN considerar “pertinente que se realize um estudo comparativo até entre diferentes modelos europeus para se perceber o impacto que cada um tem, quer a nível da formação, do planeamento dos recursos humanos e, eventualmente, na prestação dos cuidados, para depois se tirarem conclusões”..Nova avaliação, mais flexibilidade e tempos próprios para formação.Ao DN, o bastonário reforça que a “situação é grave”, porque, “a continuar esta tendência, é a própria formação médica que está em causa - podemos ter especialidades, aquelas que têm muito poucos candidatos, a correr o risco de desaparecerem”..Quanto à estrutura atual do internato, Carlos Cortes assume que “é muito rígida, pois mantém-se desde há 30 ou 40 anos, com pequenas alterações, como o Internato Geral feito a seguir ao curso, que era de 18 meses, passar a ser o Ano Comum, durante 12 meses”.O bastonário concorda também que, hoje, há “uma estrutura desatualizada, porque, afinal, neste tempo muito mudou na Medicina e nas próprias unidades de saúde”. .O seu objetivo, confessa, desde que chegou à Ordem, “era fazer uma reforma profunda do internato médico”, mas foram surgindo outras questões e, agora, o tempo para trabalhar uma nova proposta “é curto”. Ainda assim, reforça: “Queremos mexer no que pode ser considerado menos atrativo para os internos.”.Desta forma, a Ordem quer avançar com um novo modelo de avaliação do internato mais moderno. “O modelo que temos assenta demasiado na avaliação final em detrimento do trabalho que o interno faz ao longo de quatro, cinco ou seis anos, consoante a especialidade que escolheu. E isto não pode ser”. Por isso, o novo modelo de avaliação que está a ser pensado deverá assentar não nos exames finais, mas em níveis de competências adquiridas..Outro objetivo a cumprir na proposta que está a ser elaborada “é flexibilizar ou agilizar, se quisermos, a prova de acesso para os médicos que não se adaptaram à especialidade que escolheram e que querem mudar de área”. “Agora, estes médicos estão a levar cerca de dois anos para voltarem a fazer a prova de acesso e integrarem uma nova especialidade, o que é muito e queremos reduzir este tempo”, explica. .A Ordem quer ainda que o médico interno seja mais apoiado e, por isso mesmo, está a criar uma ferramenta informática que “irá funcionar como uma espécie de agenda diária do médico interno, onde ficará registada toda a sua atividade. E se percebermos que o interno está com dificuldade em se adaptar à área que escolheu, poderemos intervir mais cedo, evitando assim que desista da formação”..O bastonário reforça ainda que qualquer revisão feita ao internato será sempre para lhe dar “mais dignidade e condições, quer para os internos quer para os formadores”. E que para isto há ainda outro ponto importante a definir: “Tempos próprios para a formação, que devem ser cumpridos pelas unidades de saúde”. .“O internato é, talvez, a fase mais exigente e difícil na vida de um médico”.O presidente do Conselho Nacional do Médico Interno (CNMI), organismo da Ordem, assume ao DN que os números divulgados pela ACSS estão a gerar “grande preocupação” e que é fundamental repensar a formação. No entanto, salvaguarda José Durão, “a Ordem já está a fazer este trabalho, mas é uma tarefa bastante complexa, até porque, e apesar do internato ter uma estrutura única, as especialidades são todas muito diferentes entre si. E há motivos diferentes que podem explicar a pouca atratividade de algumas”..O médico confessa que a fase do internato da especialidade “é muito exigente, talvez uma das fases mais difíceis da vida de um médico, porque exige observação assistencial, investigação e muito estudo para os exames finais”..Por isto mesmo, considera que a mudança do modelo de avaliação, poderá ser uma das medidas que torne o internato mais “atrativo”, argumentando até que o modelo existente em Portugal está longe dos que são hoje praticados nos países classificados como tendo os melhores Sistemas de Saúde do mundo, nomeadamente o Canadá e países nórdicos, como a Dinamarca. “Têm modelos mais modernos que assentam num tronco comum e numa avaliação por competências adquiridas, e não numa estrutura que está dividida por meses, para aquisição do conhecimento, e em exames finais, como acontece em Portugal.”.O médico explica que este tipo de modelo de avaliação poderia levar a um tronco comum do internato, dando depois a possibilidade ao interno de escolher a área que preferir. “O facto de a avaliação poder ser por níveis de competência faria com que o orientador, quando considerasse que o interno estava apto a exercer a sua atividade, terminasse o internato, o que até poderia reduzir ou aumentar esta formação.”.Para José Durão, não é a só a formação que está a afastar os jovens médicos do internato. “As novas gerações referem cada vez mais que a dificuldade em conciliar a vida profissional com a pessoal é uma das razões que os afasta da especialidade e do SNS.” Ou seja, preferem não fazer formação especializada e estar a trabalhar como tarefeiros no SNS ou ir trabalhar para os setores privados e social à hora, ganhando mais e gerindo a sua agenda, do que estarem “amarrados a uma unidade a fazer muitas horas de trabalho”. Esta realidade faz com que muitos médicos, assim que acabam o curso, pensem numa especialidade fora do país, onde “a estrutura dos internatos é mais flexível”..O presidente do CNMI diz que a estas estas razões pode associar-se ainda “um certo desencanto das gerações mais novas com a profissão médica”. Aliás, refere, isso já se nota na procura dos cursos de medicina, que tem vindo a diminuir. “Os jovens preferem cada vez mais as áreas das engenharias e das tecnologias, precisamente porque sabem que depois do curso as perspetivas para o futuro são de maior qualidade de vida e maior flexibilidade laboral”..Ora, se “o desencanto já pesa na hora da entrada para a faculdade, depois, durante o curso e no contacto com as diferentes especialidades, pesa mais ainda para as escolhas no internato”. E explica: “Durante o curso, os estudantes co- meçam a perceber quais são as especialidades em que encontram mais facilmente alguma qualidade de vida e o equilíbrio que pretendem para a vida profissional e pessoal, rejeitando logo aquelas em que isso é cada vez mais difícil”. Basta referir que as especialidades mais atingidas com vagas em aberto são Medicina Interna, que “é fundamental nos Serviços de Urgência e Medicina Geral e Familiar”..“Os próprios internos, e isso temos vindo a perceber, não estão informados sobre as condições de trabalho nos novos modelos de unidades familiares e até de incentivos”, diz. O dirigente da Ordem confessa ter ficado surpreso com tantos colegas a não escolherem uma especialidade, porque, este ano, “como havia mais candidatos do que vagas, tínhamos a expectativa que quase todas poderiam ser preenchidas, mas não foi o que aconteceu”. E a grande preocupação “é o futuro do SNS”..Estudantes de Medicina querem mais condições para fazer internato.Para Rita Ribeiro, representante de todos os estudantes de Medicina, é importante que a formação seja repensada, mas que se olhe também para as condições de trabalho. “Da nossa parte, o que tem de ficar garantido são mecanismos de manutenção da qualidade formativa, nomeadamente através do cumprimento das capacidades formativas, mas também da melhoria das condições de trabalho e no acesso à formação complementar”, diz ao DN..Para a presidente da ANEM, não é em vão que houve tantas vagas a ficarem vazias: “É preciso perceber-se qual o modelo mais moderno para a formação, sendo certo que nas escolhas dos candidatos irá sempre pesar a qualidade formativa, o equilíbrio entre a vida profissional e pessoal e também as condições de trabalho.”.Do lado dos sindicatos da classe médica, parece não haver dúvidas que a sobrecarga de trabalho que recai nos médicos internos é uma das razões que está a afastar os mais jovens das especialidades. Joana Bordalo e Sá, presidente da Federação Nacional dos Médicos (Fnam), diz mesmo que “o trabalho que os internos fazem é indescritível, veem doentes nas enfermarias, fazem Urgências e ainda têm de investigar e estudar para os exames que têm”..A médica defende também que a estrutura do internato deveria ter maior “flexibilidade”. “A Fnam enviou, assim que este Governo tomou posse, uma missiva à ACSS e à própria tutela a pedir que fosse criado um grupo de trabalho para que o Regulamento do Internato médico fosse discutido entre todos, mas até agora não houve resposta. O internato tem de ser modernizado, tem de se tornar mais flexível e reunir mais opções para cada especialidade”..O secretário-geral do Sindicato Independente dos Médicos (SIM), Nuno Rodrigues, também concorda que a formação especializada deve ser revista. Perante os números atuais, o SIM propõe mesmo “a existência de um concurso adicional, no fim da escolha anual, destinado aos médicos que já tenham completado a Formação Geral, sem necessidade de realizarem novamente a Prova Nacional de Acesso”. Afinal, é consensual que a formação especializada deve ser repensada e até adaptada à nova realidade. Como diz o bastonário “o mundo mudou, a medicina e as unidades também e a formação tem mesmo de ser modernizada”..38 internos optaram por vagas fora do SNS.Dos 2432 candidatos, 38 escolheram vagas para fazer formação em unidades fora do SNS, mas certificadas pela Ordem para a especialização, como os hospitais privados da Luz, CUF Descobertas e Lusíadas, ou do setor social, Misericórdias, como os hospitais de Sant’Ana, em Lisboa, da Prelada, no Porto, e o Centro de Reabilitação de Alcoitão..A estes juntam-se a Fundação Champalimaud, o Hospital das Forças Armadas, o Instituto Português de Reumatologia, Institutos de Medicina Legal,o Hospital de Cascais - que é uma Parceria Pública Privada - e até o Sporting Clube de Portugal..De todos estes, o que vai receber mais internos é o Hospital da Luz (9), para dar formação em Medicina Interna, Anestesiologia, Radiologia, Cirurgia Geral, Medicina Intensiva, Oncologia Médica, Pediatria e Ginecologia-Obstetrícia..Depois segue-se o Hospital de Cascais que vai receber 8 internos, também para ginecologia-obstetrícia, ortopedia, Medicina Interna e Medicina Intensiva e Pediatria. O Hospital dos Lusíadas vai receber dois internos, o Hospital da CUF Descobertas dois, o da Prelada, da Misericórdia do Porto, um, o Hospital Ortopédico de Sant'Ana um, o Centro do Alcoitão também, tal como a Fundação Champalimaud, o Hospital da Arrábida, no Porto, o Instituto de Reumatologia, em Lisboa, e o Sporting Clube de Portugal, que recebe um interno para Medicina Desportiva..O Hospital das Forças Armadas recebe dois internos e os institutos de Medicina Legal recebem oito internos, que vão estar espalhados pelas sedes das regiões Sul, Centro e Norte.