Observatório da Violência Obstétrica alerta também para a forma como a lei está redigida poder levar a "uma medicina defensiva".
Observatório da Violência Obstétrica alerta também para a forma como a lei está redigida poder levar a "uma medicina defensiva".

Ordem dos Médicos contra forma como a lei sobre violência obstétrica foi feita. E pede a sua revisão

Lei prevê “erradicação da episiotomia de rotina” e “processos disciplinares” a quem usar esta e outras práticas sem justificação. Ordem critica termos da lei e vai iniciar debate sobre tema.
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O Parlamento português cessou funções no dia 19 março, depois de o Governo de Luís Montenegro, ter caído por chumbo da moção de confiança a 11 de março, mas a 14 de março ainda aprovou a Lei n.º 33/2025, de 31 março, sobre violência obstétrica, que está a gerar grande polémica junto das classes médica e da enfermagem. Isto mesmo foi confirmado ao DN pelo bastonário, Carlos Cortes, que diz estar a preparar várias reuniões com colégios das especialidades e outras sociedades científicas para que se tome uma posição estruturada e consolidada sobre esta legislação, sobretudo pela forma como está redigida e foi elaborada”.

Neste sentido, vai iniciar já na próxima semana algumas reuniões com a comunidade científica com o "objetivo de contribuir para a revisão desta legislação, assegurando que a saúde materno-infantil continue a ser prestada com os elevados padrões de qualidade, segurança e humanismo que caracterizam a prática médica em Portugal", refere num comunicado que vai ser enviado às Redações e ao qual o DN teve acesso.

O DN sabe que a Ordem dos Enfermeiros também já pediu vários pareceres sobre a mesma e que irá tomar uma posição sobre o assunto nos próximos dias.

Segundo o que está descrito na lei, esta “visa promover os direitos na pré-conceção, na procriação medicamente assistida, na gravidez, no parto, no nascimento e no puerpério, através da criação de medidas de informação e proteção contra a violência obstétrica e da criação da Comissão Multidisciplinar para os Direitos na Gravidez e no Parto”, procedendo “à alteração à Lei n.º 15/2014, de 21 de março, que consolida a legislação em matéria de direitos e deveres do utente dos serviços de saúde”.

O que está a incomodar as ordens dos médicos e de enfermagem, é o facto de estes profissionais de saúde poderem ser alvo de “inquérito disciplinar” e de “responsabilidades civis e criminais” se usarem práticas como a “episiotomia de rotina” e outras práticas de forma que não seja justificável. É que a lei estabelece a “erradicação da episiotomia de rotina” e de “outras práticas reiteradas não justificadas”.

Mais. Os próprios hospitais onde estas práticas forem usadas serão também penalizados com “penalizações no financiamento e sanções pecuniárias a aplicar (...), sempre que desrespeitem as recomendações da Organização Mundial de Saúde e os parâmetros definidos pela Direção-Geral da Saúde”.

Para o bastonário dos médicos, os “erros” na lei começam desde logo com o uso da expressão “violência obstétrica, que mais parece que é uma violência física sobre a mulher por parte dos profissionais”. Carlos Cortes refere que “este termo, que advém de um conceito recente é muito lato, e é desaconselhado pela própria Organização Mundial de Saúde (OMS) – aliás, nenhum país da União Europeia o utiliza”. Segundo explicou ao DN, “a Ordem esteve a avaliar a nível internacional os países que usam este termo e só três, da América Latina, o fazem. Há outras expressões que são usadas, como cuidados obstétricos humanizados”.

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Violência obstétrica vai estar em foco em congresso de enfermeiros

No comunicado a que o DN teve acesso, a Ordem dos Médicos manifesta, "de forma clara e inequívoca, a sua profunda discordância e rejeição da Lei n.º 33/2025, de 31 de março, recentemente aprovada pela Assembleia da República", que, considera, "não defende as mulheres e suas crianças e cria um estigma inaceitável sobre médicos e outros profissionais de saúde".

No mesmo texto, a ordem reafirma ainda a sua "a total convicção, o seu compromisso com a prestação de cuidados de saúde humanizados, baseados na melhor evidência científica, no respeito pela dignidade humana e na defesa da autonomia das mulheres em todas as fases da gravidez, do parto e do puerpério. Sempre defendemos, e continuaremos a defender, que todas as grávidas devem ser acompanhadas com empatia, respeito, competência técnica e segurança clínica, em ambientes que garantam o bem-estar físico e emocional da mãe e do recém-nascido".

A Ordem dos Médicos sublinha ainda que, "apesar de todas as dificuldades, os serviços de obstetrícia continuam a prestar cuidados de excelência, reconhecidos a nível nacional e internacional" e que a publicação desta legislação vem lançar "um clima de alarme e desconfiança entre grávidas e famílias".

Os profissionais estão indignados com a força das palavras, e mais com “o estigma que pode ser criado contra os obstetras, porque o termo dá a impressão de que se está exercer violência física sobre as mulheres na maternidade, quando não se trata de violência", destaca Carlos Cortes. "Trata-se de prática médica, agora, em confronto com um conjunto de conceitos, que, admito, podem ser melhorados, mas rejeitamos a forma como está definido o conceito de violência obstétrica e as punições que visam os profissionais de saúde".

A lei entende que “violência obstétrica é a ação física e verbal exercida pelos profissionais de saúde sobre o corpo e os procedimentos na área reprodutiva das mulheres ou de outras pessoas gestantes, que se expressa num tratamento desumanizado, num abuso da medicalização ou na patologização dos processos naturais, desrespeitando o regime de proteção na preconceção, na procriação medicamente assistida, na gravidez, no parto, no nascimento e no puerpério previsto na secção II do capítulo III da Lei n.º 15/2014, de 21 de março”.

Para a Ordem, "a lei, tal como está redigida, é tecnicamente mal concebida e não é baseada em evidência científica. Estigmatiza o trabalho médico, desrespeita a sua autonomia técnica e incentiva uma prática defensiva que poderá comprometer a tomada de decisões clínicas em benefício da saúde da mulher e da criança".

O bastonário dos médicos critica ainda o facto de “a lei ter sido aprovada nos últimos dias do Parlamento em funções, sem discussão pública, sem as associações cientificas ou as que defendem os direitos das mulheres nestas matérias terem sido ouvidas, nem sequer a sociedade civil. Em vez de se ter criado um ambiente em que este tema fosse discutido e a criação de uma lei fosse feita através de um caminho de consensos, criou-se um ambiente de indignação, o que não é bom para as parturientes”.

A lei só deverá começar a ser aplicada no próximo ano e Carlos Cortes diz que “a Ordem está disponível para a discutir com o novo Parlamento - segundo sabemos foi levada a votação pelo Bloco de Esquerda e PAN, com votos a favor da esquerda, abstenção do Chega e da IL, e votos contra do PSD e CDS ”. Mas quer discutir o assunto também na comunidade científica, indo avançar nos "próximos meses, com um conjunto de iniciativas de discussão e reflexão sobre o tema, envolvendo os Colégios das Especialidades, as sociedades científicas, os profissionais no terreno e as instituições hospitalares".


Observatório valoriza criação da lei, mas critica “hiperfoco na episotomia”

O Observatório da Violência Obstétrica (OVO) que tem vindo a alertar a sociedade para esta situações já veio assumir que “a legislação é um passo em frente”, mas “insuficiente para eliminar a violência obstétrica em Portugal” , alertando, no entanto, que o “hiperfoco na episiotomia poderá conduzir a uma medicina mais defensiva, como por exemplo o recurso a cesarianas sem indicação clínica". O bastonário do médico concorda que a forma como a lei está feita pode “levar os profissionais a recusarem-se a praticar uma série de atos médicos”.

No comunicado enviado à Agência Lusa, o OVO manifesta "algumas preocupações relativamente à insuficiência e ao foco das medidas publicadas", defendendo que “a lei define a violência obstétrica de forma bastante incompleta, traduzindo-a através de ações físicas e verbais, ou seja, a sua face mais visível", ficando “omissa a violência psicológica e emocional, o exercício de poder, o acesso livre e democrático à saúde e acima de tudo, o consentimento".

O OVO refere que “a violência obstétrica deve ser entendida como um fenómeno estrutural e coletivo, sistémico e institucional", sendo essencial que contemple questões de género, ética, empatia e consentimento nos currículos de formação dos profissionais de saúde".

A associação lamenta que instituições de saúde, tanto públicas como privadas, recusem o plano de parto apresentado pela mulher. "Ou seja, não há um respeito pela liberdade e vontade da mulher", refere. A lei não menciona a administração de medicamentos "sem informação consentida" e concentra–se demasiado na episiotomia, uma incisão efetuada para facilitar o parto, explica.

O observatório destaca ainda que "os últimos meses com gestão danosa do Serviço Nacional de Saúde (...) impactou negativamente no acesso aos cuidados de saúde", dando como o exemplo o número de cesarianas, que "disparou significativamente devido à falta de profissionais e de cuidados de proximidade".

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