Ordem dos Advogados acusa juiz de discriminação contra direitos parentais, "falta de empatia e compaixão humana"

Advogada estava na maternidade, após dar à luz, quando foi convocada para diligência. Pediu adiamento; foi indeferido pelo juiz. Ordem fez queixa ao Conselho Superior de Magistratura, mas este recusou abrir processo, considerando a decisão correta. Um pronunciamento que o bastonário diz "ilegal e discriminatório".

A advogada Andreia Bento foi mãe a 19 de julho. A 20 de julho, ainda na maternidade, recebeu uma notificação - respeitante a um processo de regulação do poder paternal que corre no Juízo de Família e Menores do Tribunal de Aveiro, e no qual representa uma das partes - da realização, dali a oito dias, de uma audiência para decidir sobre a discordância da outra parte (o pai) sobre a matrícula dos filhos do casal numa determinada escola.

Explica ao DN que no próprio dia em que recebeu a notificação fez um requerimento ao tribunal a requerer, com base no Decreto-lei n.º 131/2009 (de 1 de junho) que "consagra o direito dos advogados ao adiamento de atos processuais em que devam intervir em caso de maternidade, paternidade e luto", o adiamento, por 42 dias, da audiência. Mas este, em despacho do dia seguinte, assinado pelo juiz de turno, Nuno Sousa Catarino, foi rejeitado: "Atenta a natureza do impedimento e a natureza da questão a decidir deverá a Sr.ª advogada requerente, caso entenda como imprescindível a presença de advogado a acompanhar a sua cliente na diligência agendada (sendo que tal não é obrigatório) substabelecer num seu colega."

Uma vez que, explica ao DN, o processo em causa está relacionado com um outro relativo a violência doméstica e no qual há medidas de coação impostas à outra parte, Andreia Bento considerou imprescindível que a sua constituinte tivesse representação legal na audiência. Assegurando que não tinha com quem deixar o seu filho, nem querendo deixá-lo, viu-se forçada a encontrar um colega para a substituir. O que, estando-se em período de férias legais, se revelou muito difícil, acabando por ter de recorrer ao seu patrono, da comarca de Coimbra. Perante a situação, a Ordem dos Advogados efetuou, em outubro, via carta assinada pelo seu bastonário, Luís Menezes Leitão, uma queixa ao Conselho Superior da Magistratura, o órgão que superintende os juízes.

Relevando que "mandam os procedimentos médicos que a puérpera se mantenha atenta a sinais de infeção puerperal, o que pode suceder até 45 dias após o parto e é uma das principais causas de morbimortalidade materna", o bastonário qualifica, na referida missiva, datada de 10 de outubro, e à qual o DN teve acesso, o procedimento do magistrado que rejeitou o adiamento como "manifesta violação da lei", e afirma que este agiu "desvalorizando a lei e acima de tudo os direitos fundamentais, desmerecendo a instrumentalidade da prerrogativa profissional e sem a menor empatia e compaixão humana".

Direito à parentalidade não é "um capricho", diz Ordem

Menezes Leitão frisa também que, mesmo se a representação por advogado não era obrigatória no caso, tratando-se de "regulação de poder paternal ligada a contratante com medida de coação e um processo por violência doméstica, com historial agressivo, nenhum advogado incumpriria os seus deveres deontológicos sem garantir que aquela cliente estaria acompanhada devidamente."

E conclui: "Do ponto de vista da deontologia da profissão é óbvio que a cliente tinha de estar acompanhada, que a prerrogativa profissional de adiar atos processuais por 30 dias para uma puérpera não é um capricho, nem algo que deveria permanecer ao sabor do entendimento do advogado, é um direito profissional e sobretudo um direito fundamental!"

Daí que, "dada a gravidade dos factos descritos", anuncie a intenção de apresentar queixa à Comissão para a Cidadania e Igualdade de Género, requerendo ao CSM que, averigue a situação e que "no âmbito das respetivas competências (...) ordene a adoção das medidas efetivas que entender por adequadas ao integral esclarecimento e cumprimento das normas."

O CSM, porém, não viu no assunto qualquer motivo para agir, enviando à Ordem um despacho de arquivamento assinado pelo vogal José Manuel Monteiro Correia (um dos seis vogais deste órgão eleitos pelos juízes; os restantes nove são designados pelo Presidente da República e pelo parlamento) no qual este considera não haver "o mínimo fundamento para a intervenção do Conselho Superior da Magistratura, devendo o procedimento ser, por conseguinte, arquivado", e invocando, contra a invocação do direito da advogada, o do "superior interesse da criança" cuja matrícula na escola estava em análise na audiência.

Assim, embora reconhecendo não existir "qualquer dúvida de que aos Srs. Advogados assiste o direito, legalmente consagrado e humanamente reconhecido, de verem adiadas diligências em caso de ocorrência de circunstâncias excecionais atinentes às suas pessoas que inviabilizem a sua presença em diligências para as quais estão convocados" e "de que a maternidade é uma dessas circunstâncias, justificando-se, por conseguinte, a sua consideração pelos tribunais", o despacho, que o DN analisou, argumenta porém que tal não pode "ser visto em termos absolutos, tendo de ceder ou, pelo menos, de ser comprimido ou devidamente adaptado quando possa colidir ou comprometer outros valores também dignos de consideração, como é inegavelmente o caso da própria realização da justiça."

Rejeitar adiamento foi "claro ato de humanidade", diz CSM

E foi exatamente, prossegue o documento, "esse juízo de ponderação que o Sr. Juiz de Direito visado na exposição fez, ao proferir o despacho que proferiu." Isto porque, lê-se ainda no documento, se tratava de "uma questão de particular importância atinente a uma criança. Ou seja, a questão de saber qual a escola a frequentar pela criança no ano letivo seguinte, considerando o facto de o pai, não concordando com a matrícula realizada pela mãe, alegadamente feita por esta sem o auscultar previamente, pedir a sua anulação imediata."

Considera-se assim que tal questão "tinha de ser decidida o quanto antes, sob pena de perder o seu efeito útil, já que, estando-se em pleno período de verão o ano letivo estava prestes a iniciar-se, importando, por conseguinte, a sua decisão o quanto antes. (...) Perante este quadro, é óbvio que o adiamento da diligência em face do requerimento da Sra Advogada, não só perturbaria o normal andamento dos autos, como seria suscetível de comprometer o efeito útil da decisão a proferir."

O despacho, que constitui a posição do vogal que o assina (as queixas só vão ao plenário do CSM se houver impugnação da decisão do vogal a quem foram distribuídas) verbera ainda os termos utilizados pelo bastonário, reputando de "manifestamente excessivo e, mesmo, salvo o devido respeito, incompreensível, a alusão feita na exposição em apreço ao facto de o Sr. Juiz ter decidido "sem a menor empatia e compaixão humana". Pelo contrário, subjacente à decisão do Sr. Juiz de Direito esteve inelutavelmente a prossecução do interesse de uma criança e, por conseguinte, um claro ato de humanidade."

E termina invocando o facto de não ter existido recurso apresentado quanto à realização da diligência, considerando que isso "revela que a progenitora, patrocinada pela ilustre advogada que pretendia o adiamento da diligência, aceitou a realização desta."

Decisão de CSM "é ilegal e discriminatória"

Uma invocação que o bastonário qualifica, em conversa com o DN, de "totalmente absurda", inserta no que vê como "uma decisão muito preocupante, ilegal e discriminatória, que viola as regras que devem existir em termos de direitos parentais dos advogados."

Para Menezes Leitão, o assunto não pode ficar por aqui: "Vamos apresentar queixa à Comissão para a Igualdade e à Provedora de Justiça, e estamos a pensar fazê-la seguir também para instâncias internacionais."

Quanto à possibilidade de começar por impugnar o despacho arquivamento junto do CSM - o que implicaria que a queixa fosse entregue a outro vogal para apreciação, e depois apreciada pelo plenário, ou seja, por todos os vogais - o bastonário ainda não tomou uma decisão. "Estamos ainda a pensar o que vamos fazer em relação a isto. Ficámos muito indignados quando recebemos o despacho esta manhã."

Questionado pelo DN sobre se não faz parte dos deveres para com os clientes um advogado - no caso uma advogada - substabelecer, ou seja, encontrar que o substitua temporariamente quando sabe que vai ficar impedido de trabalhar durante algum tempo, Menezes Leitão nega: "Não há qualquer obrigação nesse sentido. Isso é impensável, é para isso que a lei prevê a possibilidade de adiamento. A advogada em causa só tem um colega de escritório, que não podia substituí-la no caso. E há muito advogados que trabalham em prática individual."

Foi exatamente tendo em conta a especificidade da profissão que a citada lei de 2009 estabeleceu a possibilidade de adiamento de atos processuais em caso de parentalidade e luto. Como explica o respetivo preâmbulo, "embora a advocacia seja maioritariamente exercida como profissão liberal, alguns dos mais importantes atos profissionais são atos judiciais - julgamentos e outros atos processuais -, cuja marcação não depende dos próprios e a que não podem faltar, salvo nos termos previstos na lei. Por esse motivo, os advogados não gozam de certos direitos e regalias que a generalidade dos cidadãos tem, nomeadamente da dispensa de atividade durante certo período de tempo, em caso de maternidade ou paternidade, ou de falecimento de familiar próximo. Importa, por isso, estender aos advogados esses direitos, de forma a compatibilizar o exercício da profissão com a vida familiar, em termos equilibrados, sem afetar excessivamente a necessária celeridade da justiça."

No caso da parentalidade, o diploma estabelece que "os advogados, ainda que no exercício do patrocínio oficioso, gozam do direito de obter, mediante comunicação ao tribunal, o adiamento dos atos processuais em que devam intervir".

E enumera os termos em que tal pode ser requerido: "Quando a diligência devesse ter lugar durante o primeiro mês após o nascimento, o adiamento não deve ser inferior a dois meses e quando devesse ter lugar durante o segundo mês, o adiamento não deverá ser inferior a um mês; em caso de processos urgentes, os prazos previstos na alínea anterior são reduzidos a duas semanas e uma semana, respetivamente."

No caso de no processo em causa existirem arguidos sujeitos a prisão domiciliária ou prisão preventiva, não pode haver adiamento.

Têm sido apresentados, nos últimos anos, projetos de lei no sentido de alterar a legislação no que respeita aos direitos de parentalidade dos advogados e à sua segurança social, mas até agora a lei não mudou.

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