Onde eu estava... por Vera Roquette
Nessa época, estava a estudar em Coimbra, a tirar o antigo 6.º e 7.º ano dos liceus, entre serenatas e “repúblicas”. Tinha deixado em Lisboa um colégio de freiras, onde era cábula, tendo-me tornado, na nova cidade, uma aluna entusiasta e comprometida, que dispensou de escritas e orais. Passei de um zero a matemática para 17 valores. Dançava então cheia de nervos o Je t’ aime moi non plus e outros slows e vinha a Lisboa todos os fins de semana. À época, pesava 40 quilos e davam-me comprimidos antialérgicos para abrir o apetite e engordar. Usava jeans que ainda hoje adoro e minissaias, com meias pelo joelho. Passava os verões em Monte Gordo e, depois, na Quinta da Balaia, urbanização criada pelo meu pai, Álvaro Roquette, e pelo seu irmão Neco Roquette. Férias maravilhosas em que fazia rigorosamente nada a não ser praia de manhã à noite, a esturruicar ao sol, sem protetores solares, claro. Pelo contrário havia um ‘potenciador’ do sol, o mágico Bronzaline, bronzeador português - ainda hoje seria capaz de identificar o aroma -, maravilhosa e milagrosa bisnaga. “Bronzaline, evocador das belezas orientais”.
Pouco dada a comezainas, a minha grande predileção eram as bolas de Berlim e as batatas fritas na praia. Monte Gordo era marcado pelo casino, um mamarracho, e um hotel. O Vasco da Gama, onde a minha família - pai, mãe, a minha irmã e eu -, ficava instalada.
A irmã era a bem-comportada, eu a rebelde. Os meninos mais velhos apaixonavam-se por mim. Era apenas possível dançar na boîte do hotel onde estava a família. Um dia, fui a uma discoteca que abrira, sem pedir ou avisar. Foi o fim do mundo. Gostava muito de dançar e de música: Beatles, The Doors, Bob Dylan, Roy Orbison, entre muitos outros. Admito que nasci num berço de ouro, à custa de um trabalho “insano” do meu pai, despachante oficial, talvez o maior de Lisboa, que ficou órfão de pai aos 16 anos. Sempre fomos uma família muito unida e tolerante. A imagem do pai austero daquela época, nunca existiu. Mas de um pai e mãe carinhosos, exigindo disciplina q.b., e que nos queriam, a mim e à minha irmã, “pessoas desenrascadas”. Fui uma criança e jovem feliz. Mas sempre com a consciência absoluta das desigualdades sociais, que achava extremamente injustas. No 25 de abril, acordei à 7 da manhã, bastante doente, com o meu pai a contactar os médicos. À tarde, recuperei e fui para a rua tirar fotografias e viver todo aquele entusiasmo. Ao chegar ao Rossio, deparei-me com alguns olhares de ódio e de raiva que me assustaram e ficaram gravados no meu espírito. Fui para casa. O 25 de abril traria perdas monetárias à minha família. Mas as maiores foram emocionais. Com muito sofrimento, os meus pais viram partir a minha irmã, o marido e os filhos - seus primeiros netos - para o Canadá. Só voltariam a vê-los muitos anos depois. Viram empregados, a quem tanto tinha ajudado, de quem tinha cuidado, que conhecia pelo nome e eram mais de cem, que considerava amigos, a virarem-lhe a cara. Essa tremenda ingratidão foi um arrombo nas nossas vidas. Passamos no escritório coisas horríveis. Insultavam-me. As revoluções têm excessos e promovem muitas injustiças, é sabido. Mas também sei que essa mágoa matou o meu pai. Do 25 de abril, porém, guardo a liberdade de expressão, algo que é como o nosso respirar:”
Depoimento recolhido por Alexandra Tavares-Teles