Onde eu estava... por Rosa Alice Branco

Onde eu estava... por Rosa Alice Branco

Escritora, nasceu em Aveiro. Tinha 23 anos em março de 1974.
Publicado a
Atualizado a

Em março de 74, estava no 1.º ano de Filosofia, depois de ter terminado o Curso de Farmácia. Já casada, continuávamos a fazer vida de adolescentes, neste caso, que estudam, dão aulas, recebem amigos em casa e não podem passar sem o Piolho, porque o Piolho era o Porto no seu melhor e a céu aberto.

Descobri-o quando fui estudar para a cidade. Era um palco fascinante. Chegávamos e logo a nossa voz se fundia com as vozes dos outros, com o fumo dos outros, no meu caso SG Gigante. Trocávamos, sobretudo, ideias com quem aparecia, porque o Piolho pululava de ideias avessas ao regime. Os rapazes abanavam os seus cabelos compridos, com a veemência das convicções e eu lembro-me que ainda esticava o cabelo com a teimosia da escova.
Tudo isto com minissaia e jeans, claro. Não precisávamos de outras calças. Mas de camisolas, sim: as camisolas dos Pintos, uma gama vasta de cores e muita mescla. A minha mãe, tão feminina, só gostava de colónias masculinas, mais frescas, e oferecia-me um Balmain, igual ao que usava. Nos dias que apontavam a normalidade lembro-me de pôr Lavanda Puig, que trazia de Espanha. As idas a Vigo eram um pretexto fantástico para comer tortilla, empanada e turrón de chocolate da Suchard, que ainda frequento na Páscoa.

Em março de 74, já cozinhávamos em nossa casa, mas fazíamos muitas refeições em restaurantes baratos. O Aleixo, ainda acessível, há muito servia os magníficos filetes de polvo ou de pescada e tinha uma aletria cheia de ovos e manteiga. E as rabanadas durante todo o ano, com molho de caramelo, eram as melhores de que me lembro. A tasca em Matosinhos, a Farmácia Campos, conseguia levar-nos para mais longe, normalmente em grupo, que depois rumava ao cinema, ao Batô, ou à Dona Urraca.
Nasci em Aveiro e, desde miúda, habitei a contradição entre a democracia vivida em casa e a absoluta censura dos tempos.

Opositor ao regime, o meu pai era, verdadeiramente, um democrata e um humanista. O meu pai explicava aos meus irmãos e a mim que nunca lhe pedíssemos alguma coisa que fizesse sentir na pele de alguns amigos que estes tinham menos possibilidades materiais do que nós. Por isso, podia chover ou trovejar, mas nunca nos levou de carro para o liceu e dizia-nos sempre para andarmos de bata, para que todos estivéssemos vestidos de igual. E, na verdade, a miséria com o seu rosto triste ladeava cada rua que percorríamos. 

O meu pai reunia-se com os outros opositores ao regime no Café Trianon. Mas à noite, a sede da oposição era na sala de cinema da nossa casa e a minha mãe nunca deixava de aparecer.

Eu, eu assistia a tudo num banco ao pé da porta. Vinha muita gente do Porto, de Coimbra e algumas pessoas de Lisboa. Como o meu pai era cineasta e presidente do Cineclube de Aveiro, os filmes que não podia passar aí eram projetados na nossa sala de cinema. A minha memória retém, ao pormenor, a sessão que mais me entusiasmou. Alguns amigos, um dos quais cineasta amador, conseguiram trazer de Paris, cosidos na bainha das calças, saias e casacos, os fotogramas do filme mítico: O Couraçado Potemkin

Vivi a minha infância entre essas personagens e as sessões político-culturais. Em Aveiro, as instituições de ensino, cindindo o feminino e masculino, obrigavam-nos a um gineceu sem corola. Nessa altura, a minha mãe vinha semanalmente ao Porto e eu acompanhava-a sempre que podia. Passávamos a tarde nas livrarias Bertrand da Rua de Sto. António. E em março de 74 frequentava, sobretudo e mais do que uma vez por semana, a livraria Leitura, a melhor livraria de Portugal. O Piolho e a leitura salvaram-me dos limites sufocantes da ditadura, sem tirarem o peso desses dias.

Depoimento recolhido por Alexandra Tavares-Teles

Artigos Relacionados

No stories found.
Diário de Notícias
www.dn.pt