Rita Ferro
Rita Ferro

Onde eu estava... por Rita Ferro

Nasceu em Lisboa em 1955. Estudou Design de Interiores no IADE. É escritora
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Em 1974 tinha 19 anos. Um ano depois casar-me-ia e dois anos depois teria a minha filha mais velha. Talvez pela associação imediata do meu avô, António Ferro, à ditadura, não se discutia política em casa. Salazar não se portara bem nem com ele, em cujo enterro não esteve presente, nem com o meu pai, António Quadros, escritor e filósofo, que lhe pediu audiência para discutir a precariedade financeira da minha avó poetisa, Fernanda de Castro, que acabara de enviuvar e de quem se dizia amigo, e não o recebeu.

Eu era, nessa altura, uma miúda alegre e demasiado esperançada no futuro, tão esperançada que a vida ficou sempre aquém das minhas expectativas. Quedava-me acordada até altas horas, imaginando o que seria a minha vida quando, enfim, me libertasse da vigilância dos meus pais. Namorei o que pude, a pulso.
Éramos três irmãos. A minha mãe tivera outros três, no princípio de vida, que não vingaram. Nasciam, eram baptizados e morriam. Depois de os enterrar um a um em pequenas urnas brancas, ficou afectada para sempre, não deixando de ser, no entanto, uma mulher extraordinária, corajosa e divertida. O meu pai, baptizado, mas não religioso, foi a Fátima a pé para pedir a Deus um filho com saúde. Quando, finalmente, o meu irmão nasceu e sobreviveu, a alegria foi indescritível.

Depois dele chegaram a minha irmã e eu, com 11 meses de diferença. O meu pai, com as filhas, era do século XIX. Não podíamos nada. Apesar de ter um salário alto para a média, na Fundação Gulbenkian como director das Bibliotecas Itinerantes, e de termos pessoal doméstico suficiente para a minha mãe jamais se cansar ou enervar, cansou-se e enervou-se o resto da vida. Em casa não se encorajavam luxos nem tagatés. Tudo o que tínhamos era negociado, dependendo do comportamento em casa ou nos colégios. O “porta-te bem para ires para o céu” aterrorizou a minha infância e o “Deus está em toda a parte” incomodava-me como uma devassa na minha infância passada em colégios religiosos.

Em Portugal nada acontecia, para além da Guerra de África, de cujas notícias nos privavam, mas soube que uma tia próxima teve, concomitantemente, três filhos na guerra. Lembro-me das cheias de 67, quando a minha mãe nos recrutou para ajudar no terreno - tinha 12 anos - e de um fogo de grandes proporções que, ainda nos Anos 60, deflagrou na casa da minha avó Fernanda, já viúva, e que consumiu parte do seu espólio precioso.

Quando 74 aconteceu, o meu irmão, também António e carregando o apelido do avô, estava na tropa. Mandaram-no prender “fascistas”. À frente do SNI, o busto do meu avô foi encapuzado.
Fui eu a dar a notícia, em primeira mão, do que acontecia no Carmo, pois voltava do Chiado. Cheguei a casa nervosa, mas sem a noção de como aquilo mudaria para sempre as nossas vidas. “Pai, prenderam o Marcello!” Como resultado, deu-me um sopapo na cara, por me ter achado histérica e totalmente inconsciente do que afectaria a família.

Foi logo, dias depois, que comecei a experimentar o sentimento da incriminação por sangue que nos atingiu a todos. Até lá, todos elogiavam o meu avô e eu tinha vaidade no meu nome.

António Ferro morreu um ano depois de eu nascer, e, apesar de consanguíneos, os netos tiveram menos sorte do que os amigos: só já lhes chegou o eco da sua energia, os testemunhos da sua obra tão vasta, a ressonância do seu poder encantatório, a evocação entusiasta dos admiradores e o ódio dos adversários.

Salvou-nos o bom senso. Em 1999, publiquei com a minha irmã o livro Retrato de uma Família, e, em 2016, por minha conta, a biografia António Ferro, um homem por amar. Pude confirmar o que a minha mãe, sua nora, dizia dele: além de ter feito o que fez por Portugal, era o melhor coração que conhecera na vida.

Depois, a descendência lá soube separar as boas das más lições e aderir espontaneamente à democracia, aturando, com paciência, os seus sofismas: toda a direita é sinistra, toda a esquerda é benévola.

Depoimento recolhido por Alexandra Tavares-Teles

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