Nicolau Santos, sentado, a assinar o primeiro contrato com o Jornal de Notícias.
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Onde eu estava... por Nicolau Santos

Jornalista e poeta, nasceu em Luanda em 1954. É presidente do conselho de administração da RTP.
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Explicação aos pássaros: durante muitos anos, os brancos nascidos em Angola, como o meu pai, tinham um Bilhete de Identidade onde, na raça, eram identificados como brancos de segunda. Depois, o mar à nossa volta. A baía, a ilha, a Samba, o Mussulo, o Morro dos Veados, a foz do Cuanza, os picnics  com imensa gente, as águas quentes e cristalinas, o pôr-do-sol que só existe em África, as chuvadas torrenciais. Em seguida, os cheiros: a maresia, a peixe, a marisco, a fruta, todo o tipo de fruta, e as árvores nos quintais, mamoeiros que cresciam disparados para o céu, bananeiras, pitangueiras, mangueiras, cajueiros. Os animais: pastores alemães, cágados, coelhos, pombos, saguins, chimpanzés. As acácias, com as suas flores vermelhas, que delimitavam várias ruas e foram motivo de tantos poetas. O convívio constante, nas casas de uns e de outros. As festas, onde se convidavam 80 e apareciam 120. O futebol nos Coqueiros, o Sporingué, o basquetebol, o andebol, o hóquei, o atletismo.

Finalmente, a universidade. A consciência política. O Centro Cultural. Os filmes e as suas mensagens. O Jornal Mural. A luta pela independência. As cisões entre universitários. A guerra civil. Os tiros, as granadas, as bazukas, as rajadas, as bombas, os mortos, a falta de água, de luz, de comida. O cheiro a morte, a pólvora, a chumbo. Sair de casa agachado com a inconsciência de desconhecer que se podia não voltar. Tudo por fazer. Um país novo a construir. E melhor, muito melhor do que aquele que existia. Até que o sonho se desfez.

Cheguei a Portugal no dia 28 de outubro de 1975. Vim num avião que tinha ido buscar os funcionários da Shell e apanhei boleia com três amigos. Estávamos a ser perseguidos e ameaçados publicamente. Chegámos à conclusão de que não era o país com que sonhávamos que iria nascer depois de 11 de novembro. Outros amigos decidiram ficar. Foram presos, torturados, uns enlouqueceram, outros morreram, outros ainda, felizmente, sobreviveram e têm trajetos pessoais e profissionais de indiscutível sucesso em Portugal.

Como era essa Angola que já não existe? Penso que está retratada num poema que escrevi há vários anos intitulado Bilhete de Identidade.

Nasci branco de segunda
Calcinhas ou kaluanda
Nasci com os pés no mar
Em São Paulo de Loanda

Brinquei de pé descalço
Em poças de águas castanhas
Tive lagartas da caça
Não escapei às matacanhas
 
Comi manga sape-sape
Fruta-pinha tamarindo
Mamão a gente roubava
No quintal do velho Zindo
 
Pirolito que pega nos dentes
Baleizão, paracuca
E carrinhos de rolamentos
Numa corrida maluca
 
Tinha o Gelo, tinha a Biker
Miramar e Colonial
O Ferrovia, o Marítimo
Chás dançantes no Tropical
 
O N’Gola era só ritmo
O Liceu uma lenda
Kimuezo e Teta Lando
E os Ases do Prenda
 
Havia velhas que fumavam
E velhos com ar de sábio
Enquanto novas músicas
Se insinuavam na rádio
 
“E a cidade é linda
É de bem querer
A minha cidade é linda
Hei-de amá-la até morrer”
 
Quem não estudou no Salvador?
Quem não se lembra do Videira?
E das garinas de bata branca
Nossas colegas de carteira?
 
Depois havia o Kinaxixe
Futebol era nos Coqueiros
Havia praias, um mar quente
Savanas imensas, imbondeiros
 
E havia o som do vento
O cheiro da terra molhada
As chuvas arrasadoras
O fogo das queimadas
 
E havia todos os loucos
Do progresso e da guerra
A Joana Maluca, o Gasparito
A desgraça daquela terra
 
Nasci branco de segunda
Calcinhas ou kaluanda
Nasci com os pés no mar
Em São Paulo de Loanda

Depoimento recolhido por Alexandra Tavares-Teles

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