Onde eu estava... por Maria José Falcão

Onde eu estava... por Maria José Falcão

Professora do 1.º ciclo, nasceu em Lisboa. Tinha 13 anos em fevereiro de 1974
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Sou a mais nova de três irmãs, filhas de uma dona de casa e de um empregado de escritório. Todas as manhãs, após o pequeno-almoço (pão com manteiga e um copo de leite com Ovomaltine), vou para o Liceu Nacional de Almada. Em fevereiro de 1974, o mais certo é vestir calças de bombazine à boca de sino com meias-calças por baixo. E camisola interior.

Com 13 anos, já não uso pasta. Levo os livros debaixo do braço, obrigatoriamente forrados e com pétalas de flores no meio das páginas. As canetas Bic Laranja e Bic Cristal, os lápis de cor Viarco e as borrachas verdes vão num estojo. Estou no 4.º ano do liceu (8.º de escolaridade), numa turma só de meninas. Apesar de o liceu ser misto, nas turmas não há misturas. Os recreios são conjuntos, mas há vergonha e constrangimento. Não brincamos juntos. O máximo que eles nos fazem é desfazer o laço da bata, que é branca e obrigatória. Todos os dias a diretora, plantada no portão da escola, verifica o estado da bata.

As meninas brincam a saltar o elástico, à apanhada, ao eixo. Ou a replicar o que se aprende nas aulas de ginástica, mas sem o fato. É composto por uma T-shirt branca, calções azuis à Henrique VIII, tufados, por cima dos quais se veste uma saia envelope também azul. As sapatilhas, brancas, têm um elástico no peito do pé. 

Há aulas de Religião e Moral, claro. Ensinam a comportar-nos: uma menina não assobia, uma menina senta-se e caminha com elegância, coisas que de resto a minha avó também me dizia.

A professora mais dura é a de Lavores, apesar de fazermos coisas ‘queridas’. Por exemplo, um enxoval para um bebé de uma família carenciada.

A meio da manhã, passo no refeitório, sobretudo por causa dos chocolates em forma de lápis ou cigarro. Ou das sombrinhas da Regina. Tenho pena que não haja caixas dos furos. Por cada furo, uma surpresa doce. Nem venda de pastilhas Gorila ou Adams. É proibido mascar Chiclets na escola. 

O meu horário é o da manhã. Depois de almoço, faço os trabalhos escolares. Leio os livros das Gémeas, dos Sete e dos Cinco. Jogo o Jogo da Glória com uma amiga. 

O lanche, com sorte, é leite Ucal com chocolate e bolachas de baunilha.
Ainda brinco com bonecas. Com a minha Nancy. E com as bonecas de papel destacáveis, que trazem roupas e acessórios. 

Por volta das 6.00 da tarde, na televisão, há meia-hora de desenhos animados. Já não passa o Carrossel Mágico (o cão Franjinhas mandava-nos para a cama). Ao fim de semana, na televisão de um só canal que fecha sempre com o hino, vejo Bonanza. Os momentos altos são Noite de Teatro - talvez venha a ser atriz -, e o Festival da Canção. 

No meu gira-discos portátil, ouço os singles de Cat Stevens, Beatles, Simon & Garfunkel, Neil Young, Elton John.

Sei que há coisas proibidas. A minha irmã mais velha, estudante de Medicina, e o namorado, estudante de Direito, têm muita atividade associativa. A minha irmã esconde certos livros dentro do colchão. Livros proibidos. Alguns empregados do café Central, em Almada, poiso de muitos estudantes, são informadores da PIDE. Mas isso só virá a saber-se a 25 de Abril, o dia que nos tornará livres.

Depoimento recolhido por Alexandra Tavares-Teles 

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