Onde eu estava... por Manuel S. Fonseca

Onde eu estava... por Manuel S. Fonseca

Manuel S. Fonseca é licenciado em Filosofia. Fundou a Guerra & Paz Editores, que continua a dirigir. Foi programador da Cinemateca Portuguesa e de cinema na RTP2, produtor da SIC e da VC Filmes. É cronista. Nasceu a 27 de julho de 1953.
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No dia 6 de Janeiro eu tinha caído mais ou menos de pára-quedas em Lisboa. Já não vinha a Portugal desde bebé - então Metrópole - há 15 anos. Vinha de Angola, onde vivera uma infância felicíssima e uma adolescência de um erotismo tropicalizante. Cheguei a Lisboa com a mesma tanga de Tarzan com que eu em África saltava de liana em liana: o pequeno saguim que eu era estranhou, está claro, o frio, desconhecido e descontente Inverno. Aterrei na Faculdade de Direito, descobrindo que, selva por selva, preferia os meus chimpanzés aos dinossauros que ali encontrei. Os dinossauros davam aulas, os gorilas estavam à porta. Abro uma excepção, havia dois jovens professores, os únicos simpáticos saguins do meu género, que valiam o esforço de sair da cama e dar corda aos sapatinhos da Padre Francisco Álvares - ao lado do Jardim Zoológico, está claro - até à Alameda Universitária. Eram os jovens Marcelo e Jorge, um viria a ser o mais fotografado Presidente do mundo, o outro um desconcertante constitucionalista. O futuro mostraria que eram, aliás, ainda melhores do que eu pensava.

Lisboa, nesse Janeiro de 1974, era uma cidade em que se ouvia, quando a brigada reumática deixava, o Venham Mais Cinco de José Afonso (não me admira que o MFA o tenha escolhido para segunda senha da Revolução, que só não foi porque a Censura o tinha proibido entretanto, tendo o Grândola sido segunda escolha), mas também o Chico e Caetano da Morena de Olhos de Água, e eu, ainda a querer ser desviante e iconoclasta, me inclinava para o Grand Wazoo, de Frank Zappa, e para a intragabilidade do Variations IV, de John Cage (um tipo, aos 20 anos, ou é a rasgar ou então que se lixe lá a vida!). Todos comprados na Opinião.

De dia, a cidade era cinzenta, muito mais vetusta do que o meu professor de Latim, no Salvador Correia, em Luanda. Mas à noite, ó que transformação, da Alga ao Porão da Nau, a cidade era um “lobisomem em Londres”, que nos fazia esquecer os confrontos na faculdade entre o pré-MRPP, que dava pelo flamejante mote Ousar Lutar, Ousar Vencer, e o já escarrado PCP que o sorumbático lema Unidos Venceremos  tão bem revelava.

A 6 de Janeiro, ou talvez uns dias antes, recebi, dentro de um envelope escrito com letra de 3.ª classe, o meu primeiro Avante!  clandestino, em papel-bíblia. O regime iria estremecer, um mês depois, com O Portugal e o Futuro, de Spínola, mas estrebuchou e não caiu com o falhado Golpe das Caldas, a 16 de Março. Pensando que a ditadura era de ferro, meti-me, nesse mês de Março, num avião e voltei a Angola. Ia, e não sabia, para a Independência. Eis como o 25 de Abril mudou a minha vida, coisa que a 6 de Janeiro jamais adivinharia. Jamé!

Texto recolhido por Alexandra Tavares Teles

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