Onde eu estava... por José Tavares Marcelino
Em fevereiro de 1974 parte da minha vida era secreta. Nem a minha mulher sabia que eu pertencia ao Partido Comunista Português. Desconfiava, mas saber não sabia. Sempre neguei. Justificava a minha prisão com atividades numa comissão de trabalhadores e as negociações do contrato coletivo de trabalho.
Em fevereiro de 1974 sentia-me vigiado. Desde que saíra da prisão de Peniche, em 1972, que não me sentia seguro. O regime impunha a cultura do medo. Caminhava sempre atento a quem me rodeava. Ainda hoje, sento-me sempre nos bancos laterais dos autocarros para poder ver todos os passageiros. Havia muito medo, mesmo. Um medo que não significava cobardia. Apenas o receio de que alguma coisa acontecesse à minha família porque era certo: se fosse novamente preso a pena não seria inferior a cinco anos.
Sou um de oito irmãos. A minha mãe ficou viúva muito cedo. Eu tinha quatro anos. O mais novo apenas um mês. Por isso tive de trabalhar. Consegui tirar o curso de Eletrónica à noite, como trabalhador-estudante, numa escola industrial de Lisboa. Há exatamente 50 anos trabalhava numa empresa de eletromedicina, usando um nome falso. Foi a única maneira de conseguir um emprego, tendo em conta o meu passado. Fui despedido de técnico da TAP (fazia a manutenção do piloto automático e da caixa negra que até é cor-de-rosa) por ter sido preso - seria reintegrado depois do 25 de Abril ajudando a fundar o Sindicato dos Trabalhadores de Aviação e Aeroportos (SITAVA). Saí do Metropolitano de Lisboa quando, ao descobrirem o meu passado, me propuseram que me comprometesse por escrito a abandonar atividades políticas. Recusei. O meu envolvimento político começara aos 19 anos, com a campanha de Humberto Delgado (1958).
Há 50 anos morava na Bobadela. A minha mulher era enfermeira no posto médico. A minha filha tinha seis anos. No dia em que fui preso, dois anos antes, agentes da PIDE foram a nossa casa. A minha filha quis saber quem eram. “Amigos”, respondi, para não a assustar. Então a menina foi oferecer-lhes caramelos.
Em 1974, ganhava um salário razoável - 3600 escudos. Pagava de renda de casa 1480 escudos, precisamente o ordenado da minha mulher. Tínhamos frigorífico, televisão, máquina de lavar roupa. Não havia telefone nem carro. Duas vezes por ano, íamos à terra. A carreira “Capristanos” levava três horas para fazer 65 quilómetros.
Colaborava assiduamente com o Clube Recreativo Bobadelense, uma associação que permitia à população práticas desportivas. Também ali se organizavam bailes. Frequentava-se a biblioteca, uma boa biblioteca com vários dos livros proibidos pelo regime. Tinha um bar que vendia café, bagaço, cerveja gasosa ou pirolitos - gasosa cuja rolha era um berlinde - a preços mais baixos.
Era sócio do Cineclube de Lisboa que passava filmes de qualidade, explicados antes do visionamento. Filmes que não passavam nas salas normais.
Desse tempo, tenho muitas saudades do dia 25 de abril (estava a montar o primeiro aparelho de angiografia do Hospital de Santa Maria). E do primeiro Dia do Trabalhador festejado em liberdade. Hoje, como fundador da União dos Resistentes Antifascistas, ando pelas escolas a explicar aos jovens o que era aquele tempo.
Depoimento recolhido por Alexandra Tavares-Teles