Onde eu estava por... José Pedro Soares

Onde eu estava por... José Pedro Soares

Foi o preso político por mais tempo submetido à tortura do sono. Numa só sessão de interrogatório, esteve 21 dias sem dormir, com uma única interrupção – ao fim de oito dias, permitiram-lhe que descansasse uma noite. Nasceu em Cachoeiras, Vila Franca de Xira, em 1950.
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Trinta e três dias de interrogatório, divididos entre a António Maria Cardoso, sede da PIDE, e o Reduto Sul de Caxias. No regresso à minha cela, levava no corpo as marcas desse horror. Horas e horas em pé. Murros e pontapés. Espancamento com cavalo-marinho que me rasgou a roupa. Perdi a noção de tempo e de espaço. Tive alucinações. O chão parecia-me coberto de bichos, ouvia sons, vozes imaginadas. Outras reais: gravações com a minha mãe e a minha namorada, os gritos de homens a serem espancados.

Tinha 21 anos e era franzino. Aguentei-me pensando nos camaradas que trabalhavam na clandestinidade, nos miúdos da minha idade que morriam na guerra colonial. Na miséria a que nos destinavam, na exploração dos mais fracos.

Resisti. Não traí nem denunciei camaradas, sabendo que estava ali porque fora traído. Alguém muito bem colocado na minha organização, ligada ao Partido Comunista Português, cedera, fizera um acordo com a PIDE. Traíra dezenas de camaradas. Traíra o Partido.

Resistir era uma questão de honra. “Não tenho nada para dizer”, repeti enquanto consegui falar. Estava preparado para morrer. Nesse período, vim a saber mais tarde, os meus amigos escreveram o meu nome em vários muros de Lisboa.

Estávamos em 1971. Quando a PIDE me devolveu à cela, em Caxias, onde esperava julgamento, estava irreconhecível. Ninguém acreditava que sobrevivesse. Não andava pelo meu pé. Fui hospitalizado. Acabei julgado e condenado a três anos e meio de prisão. Fui então transferido para Peniche, uma prisão política de alta segurança.

Em Peniche, vivíamos ao som do apito dos guardas. Aquele som marcava a alvorada, a chamada para o pequeno-almoço – café numa caneca de zinco e um pão –, a hora do recreio, a chamada para a sopa e um guisado gorduroso, normalmente feito com restos de bacalhau.

Quando cheguei a Peniche, os presos ficavam fechados nas celas durante 23 horas. Mais tarde, em resultado da nossa luta, conseguimos que esse período se restringisse às noites. Passámos a poder circular no corredor e a ser tratados por senhor, pondo fim ao tratamento quase sempre grosseiro, característica de uma guarda prisional maioritariamente bronca.

À noite, o silêncio era sepulcral, apenas rasgado pelo vento e pelo bater do mar nas rochas. Atrás de vidros martelados, imaginávamos as traineiras que partiam para a pesca. As gaivotas. Reais eram a humidade que corria pelas paredes e os passos dos guardas, pesados, no chão do corredor.

Durante três anos, a minha vida esteve confinada a esse forte. Uma cadeia de homens. Quando cheguei fui diretamente para o pavilhão A, cela coletiva com 10, 12 presos. Fui depois transferido para o pavilhão B, um corredor de onde saíam pequenas celas. Em cada uma deles cabia uma enxerga e um armário. As portas de madeira tinham um postigo pelo qual os guardas nos vigiavam. Permitiam-nos um ou dois livros, escrever – as cartas eram abertas –, e receber a família de vez em quando. Apenas a mais próxima: pais, mulher e filhos.

Certa manhã de abril, estou com o camarada Ângelo Veloso na sala da televisão. Quando ligámos o aparelho, a emissão estava interrompida. Pensámos que talvez tivesse morrido um fascista importante. Mas pouco depois, é lido o comunicado das Forças Armadas. O texto deu para perceber que o movimento tinha um cariz progressista.

O comportamento dos guardas confirmava-o: estavam atrapalhados, faziam-se de simpáticos. Exigimos falar com a direção da cadeia. Quando percebemos que havia quem defendesse uma libertação seletiva dos presos, fomos claros – ou saímos todos ou não sai nenhum. Quando transpus aquele portão no dia 27 de abril, senti a mais maravilhosa sensação da minha vida. Nunca quis procurar o homem que me traiu.

Depoimento recolhido por Alexandra Tavares-Teles

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