Onde eu estava por... José Manuel Pereira de Almeida

Onde eu estava por... José Manuel Pereira de Almeida

Nasceu em Lisboa no ano de 1952. É médico, pároco de Santa Isabel e vice-reitor da Universidade Católica.
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Março de 1974, Faculdade de Medicina da Universidade de Lisboa. Finalmente, ao quarto ano, estudava a doença. Anatomia patológica, cadeira que tinha tido no ano anterior, era para mim revelação e entusiasmo. Depois de três anos a estudar o ‘normal’, aquelas aulas serviam de aperitivo ao que iria fazer na minha vida. De tal maneira me seduziram que acabei seguindo a especialidade.

Eram tempos academicamente estimulantes, que reforçaram a minha vontade de ser médico. A vocação presbiteral, percebia na altura, deveria esperar por outra maturidade, necessária à compreensão de um desafio e de uma decisão radicais.

Em março de 1974 tinha 21 anos. Ao interesse pelo curso, juntava-se a efervescência intelectual e cívica alimentada em algumas paróquias da cidade. Nas vésperas da revolução, a paróquia era um lugar muito interessante. Mas, funcionando como um ovo, percebia-se que para podermos crescer tínhamos de o quebrar. Na paróquia de São Sebastião da Pedreira, a minha, o padre Mário Correia estimulava debates entre jovens. Uma ideia de pastoral juvenil chegava de Roma com o padre António Janela. A liberdade vivida no Centro de Animação Pastoral Juvenil funcionava por oposição ao espartilho que tinha significado a Mocidade Portuguesa. “Que igreja queremos ser?” era a pergunta essencial, com um gosto pelos estudos bíblicos e por uma Cristologia e uma Eclesiologia renovadas.

Na paróquia de Santa Isabel íamos expor-nos aos ventos do Concílio Vaticano II; movimento complementado com um outro, geograficamente próximo, ligado à Capela do Rato, onde o padre Alberto Neto (com quem mais tarde fui viver) e a sua comunidade provocava sub-repticiamente o regime.

Não sendo uma igreja que dissesse mal de Salazar - mesmo nos Jerónimos, com o padre Felicidade Alves, havia alguma cautela - não se pode generalizar, descrevendo toda uma igreja enfeudada ao regime. Longe disso.

Em 1974, vivia numa cidade onde se estudava nos cafés, sob uma enorme nuvem de fumo em que ninguém parecia reparar. De cigarro na mão, calças à boca de sino e cabelo não tão curto quanto uma tia minha desejaria lá frequentava o snack-bar Noite e Dia, um dos primeiros self-services da cidade e o incontornável Galeto.

Sou filho único. O meu pai tinha um trabalho administrativo. A minha mãe era professora no Liceu Camões, onde estudei, com natural acréscimo de responsabilidade. Era numa escola masculina, dirigida por Joaquim Sérvulo Correia, sempre muito exigente e atento à estreita observância das regras, nomeadamente no que diz respeito a aproximações femininas. Contactos que existiam com abertura precisamente no meio paroquial. Recordo um grupo de teatro, em São Sebastião, formado por rapazes e raparigas, alguns deles vindos, inclusivamente, de fora da órbita católica.

Do Camões recordo as aulas de Religião e Moral como espaço de liberdade, obra do padre Vítor Gualdino. Tive sorte, dependia muito do professor. Entre os rapazes, a questão da guerra colonial era debatida em surdina. Quem estava em Medicina tinha um adiamento garantido. Mas eu não desconhecia que muitos partiam e que, desses, muitos morriam. A consciência da opressão não atingia a todos na mesma medida. Na minha família não havia presos políticos nem contestatários. Porém, sabia muito bem que sobre determinados assuntos o melhor era não falar.

A ópera era outro dos meus pontos de interesse. Uma bela noite, mais para abril, fui ao Coliseu dos Recreios, com um grupo de amigos, assistir à La Traviata. No regresso a casa, sozinho, fui assaltado pela primeira vez na minha vida. Levaram a pasta com o primeiro cheque salarial e o fio de prata (salvando-se a cruz, que ainda guardo, porque caiu para dentro da camisa). Cheguei a casa assustado e ansioso, às primeiras horas do dia 25 de abril.

Depoimento recolhido por Alexandra Tavares-Teles

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