Onde eu estava... por José Luís Pacheco
Em finais de 1973, eu era um jovem de 17 anos que frequentava o 7.° ano do Liceu Camões, em Lisboa, e, como tantos outros, dividia o meu tempo entre os estudos, os amigos, os passatempos (o futebol, a música, o cinema, a literatura), as tentativas para estabelecer laços com o sexo oposto e estava muito atento à realidade política e social do país. Por isso, era visceralmente contra o regime e a Guerra Colonial.
Vindo de famílias remediadas do mundo rural algarvio, os meus pais tinham presenciado diretamente a situação em que viviam a maioria dos portugueses, em aldeias sem água nem esgotos, labutando duramente para sobreviver e com poucas ou nenhumas hipóteses de dar uma educação aos filhos que lhes permitisse quebrar o ciclo da pobreza. Falavam-me das mulheres que vinham do Algarve para a monda do arroz na Comporta, em condições duríssimas, dos campos imensos desaproveitados por latifundiários vivendo ricamente em Lisboa ou Cascais, enquanto as gentes mal tinham de comer. E via por todo o lado as limitações absurdas à liberdade. O medo de falar, a censura aos jornais, a escolha limitada de livros, filmes, as prisões arbitrárias de opositores (um dia, ao chegar ao escritório, o meu pai encontrou a PIDE à espera para prender um colega seu).
O que mais detestava eram as humilhações constantes face aos poderosos. No Camões todas as manhãs eram “submersas”, como diria Vergílio Ferreira. Os colegas eram mandados para casa porque tinham jeans (“isto não é uma escola técnica”), por terem o cabelo comprido ou, cúmulo da idiotice, por vestirem calças vermelhas (ou encarnadas, como a censura obrigava a dizer).
Para mim, o pior foi o dia em que, chamado ao reitor com um colega africano - havia dois ou tês no Camões -, por um pecadilho menor, o senhor não arranjou melhor do que nos humilhar pela nossa condição social, com laivos de racismo em relação ao Nélson. Após inquirir das profissões paternas, disparou: “Em vez de estarmos agradecidos por sermos aceites neste liceu da elite, onde não pertencemos, comportamo-nos assim?” Um miúdo não esquece isto.
A guerra impunha-se a todos os rapazes da minha idade, como destino (quase) inevitável, naquilo que na altura se chamavam “missão de soberania”. Além de a considerar uma guerra imoral, a minha aversão era reforçada pelo facto de desde criança ver a minha avó paterna chorar por ter sempre um neto em África, na guerra. A alternativa seria “dar o salto”, partir para um exílio do qual me parecia não haveria regresso. Não creio que tivesse sido capaz de o fazer.
Ser contra o regime era, para mim, um dever moral antes de se tornar político. Daí, a minha adesão ao movimento estudantil, que era o que estava à mão. MAESL, Grupo de Estudantes, enfim, aquela nebulosa confusa e permeável (descobrimos depois que o “camarada” que convocava as reuniões e tinha todos os contactos era informador da PIDE...), que abrangia todos os que eram contra o regime sob pretextos mais ou menos educativos e culturais. Nunca corri riscos excessivos, participei em duas manifestações rapidamente dispersas pela intervenção policial, distribui panfletos e um boletim associativo. Tive a sorte de escapar à famosa detenção dos 151 “intrépidos adolescentes” na reunião em Santa Maria, em dezembro de 1973, à qual não fui porque uma rotura de ligamentos no joelho esquerdo mal me deixava andar. No dia seguinte, ao chegar ao liceu, os quatro ou cinco colegas mais ativos estavam ausentes. Voltaram quase ao final da manhã, com o cabelo rapado, enquanto alguém me aconselhava a desaparecer provisoriamente.
Felizmente, em breve chegaria aquela madrugada “do dia inicial, inteiro e limpo” que todos esperávamos. Dia sem o qual, nada do que fui e fiz na minha vida posterior teria sido possível. Só isso chega e sobra para dizer “25 de Abril sempre”!
Depoimento recolhido por Alexandra Tavares-Teles