Onde eu estava... por José Lamego

Onde eu estava... por José Lamego

Professor catedrático jubilado, José Lamego nasceu em Coimbra no ano de 1953. É doutorado em Ciências Jurídicas. Foi deputado e exerceu funções governativas pelo Partido Socialista, de que foi destacado dirigente.
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Há precisamente 50 anos frequentava a Faculdade de Direito de Coimbra, para onde me tinha transferido em setembro de 1973, ido de Lisboa. Vivia na República dos Prakyistão, um casarão enorme e frio, onde, por solidariedade política, os outros estudantes me dispensavam alojamento gratuito.

O ambiente nas repúblicas coimbrãs desse tempo era fortemente politizado e, na imensa maioria delas, adverso ao regime, dividindo-se aí os estudantes entre os que estavam com o PCP e os que eram mais próximos da extrema-esquerda - não obstante, o movimento estudantil em Coimbra era organicamente menos estruturado e ideologicamente menos radicalizado do que em Lisboa. Os temas principais da mobilização estudantil eram a luta contra a ditadura, a oposição à Guerra Colonial.

Tinha-me transferido para Coimbra após a minha segunda prisão pela PIDE/DGS em maio de 1973 -- a primeira tinha sido a 12 de outubro de 1972, na sequência dos acontecimentos de que resultou o assassinato de José António Ribeiro Santos. Sentia-se no ar algo que cheirava a crise de regime, acelerada, sobretudo, pela perceção de que o problema colonial tinha sido conduzido a um beco sem saída. Apesar do seguimento atento (nas parcas condições que a época permitia), dos movimentos estudantis na França, na Itália, na Alemanha e nos Estados Unidos, os fatores de radicalização ideológica da juventude portuguesa dos finais dos Anos 60/ inícios dos Anos 70 do século XX eram muito mais endógenos do que exógenos.

É esse o contexto em que nesse janeiro de 1974 sou preso por uma terceira vez, em atividades de preparação de uma grande manifestação em Coimbra contra a ditadura e a Guerra Colonial. Apesar de, na realidade, sermos muito poucos, sabíamos da apreensão que a convocatória dessa manifestação estava a causar nas forças policiais e de segurança da cidade.

Levado para Caxias, a PIDE aplicou a “receita do costume”: tortura do sono e espancamentos. No que me diz respeito, sofri um período inicial de privação de 16 dias, seguidos de mais dois curtos períodos de três e dois dias. Depois de ter havido uma suavização no começo do consulado político de Marcelo Caetano, os dois anos finais do regime foram marcados por uma intensificação da tortura (sobretudo, da tortura do sono). A seguir ao 16 de março (Golpe das Caldas), as sessões de tortura terminaram (pelo menos, no meu caso)

Por viés ideológico, não estávamos atentos às movimentações no seio das Forças Armadas - a não ser a um hipotético golpe da extrema-direita militar, sobre o qual corriam rumores nos finais de 1973. Por isso, quando na manhã de 26 de abril de 1974, soldados de capacete e empunhando metralhadoras entraram no reduto da Prisão de Caxias, a primeira impressão que tive era de que se tratava do propalado golpe da extrema-direita.

Por volta das 11.00 da manhã, os presos são reunidos no pátio da prisão, onde estavam já bastantes jornalistas, mas só nos finais da noite saíram. Julgo que fui o primeiro preso a transpor a porta do edifício da prisão para o pátio interior. Do lado de fora, estava a poetisa Sophia de Mello Breyner, que me perguntou: “Posso oferecer-lhe uma rosa em nome da Comissão Nacional de Socorro aos presos políticos?”

Depoimento recolhido porAlexandra Tavares-Teles

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