Onde eu estava por... Jorge Bandeira
De abril de 1974 recordo uma das mais reconfortantes refeições da minha vida: almôndegas com batatas fritas às rodelas, jantar servido nos Pupilos do Exército aos rapazes que na madrugada do dia 25 deixaram Santarém rumo a Lisboa, na esperança de que o capacete - e por isso o levavam - lhes disfarçasse a demasiada juventude.
Eu estava lá. Era um dos 240 homens da Coluna de Santarém, comandada pelo Capitão Salgueiro Maia, que tomou o Terreiro do Paço e cercou o Quartel do Carmo. Que escoltou Marcelo Caetano ao aeroporto e, mais tarde, ficou como força de intervenção ao Conselho da Revolução na sua deslocação à RTP, para a comunicação ao país. Que depois do jantar - acrescente-se uma garrafa de Lancers, que fora oferecida no Largo do Carmo e guardada no bolso -, rumou ao quartel da Pontinha, onde passámos a noite em claro, para ser a força de proteção ao Comando - Major Otelo e restantes capitães.
Que os tanques tivessem parados nos semáforos das artérias da baixa lisboeta é apenas um devaneio cinematográfica. Mas é verdade que ao descer a Avenida da Liberdade, na chegada ao semáforo próximo da Praça da Alegria, um Fiat 127 chocou com um dos nossos carros e que ali ficaram, carro amolgado e o seu dono, este felizmente intacto, por ordem do nosso capitão.
Em abril de 1974 eu tinha 21 anos e estudava na Belas Artes de Lisboa, a cidade onde nasci, bela, porém rodeada da miséria que as cheias de 1969 deixaram bem evidente. A minha mãe vendia frutas e hortaliças, o meu pai tinha carros de praça. Morava no Príncipe Real. Frequentava o liceu Passos Manuel e tocava numa banda hard-rock. Era, como disse, estudante universitário e tropa, temendo por um futuro que certamente me destinava a guerra colonial. Em janeiro de 1974 entrei na Escola Prática de Cavalaria de Santarém como recruta. Em boa hora. Na noite de 24, tivemos instrução até às 23:00. Por volta das meia-noite fomos acordados e levados para o anfiteatro. Salgueiro Maia leu-nos o primeiro comunicado das Forças Armadas. Pediu que os que estivessem com ele dessem um passo em frente. Todos demos esse passo, mesmo com o fantasma do falhado golpe das Caldas a pairar na nossas cabeças.
A Coluna saiu por volta das 03:30. No Vale de Santarém avariou uma AML (pequeno carro de combate), que ficou pelo caminho.
Praça do Comércio. Os carros foram sendo colocados nas entradas e saídas da praça. A minha Berliet ficou na Praça do Município, fazendo uma barreira no final da Rua do Arsenal. A população queria passar para os empregos. Pouco tempo depois, vi ao fundo da rua do Arsenal movimento. Avisei o meu Alferes. Veio a saber-se que era um M47 (carro de combate de lagartas) de Cavalaria 7, com tropas comandados pelo Brigadeiro Junqueiro dos Reis. Rapidamente, tudo se precipitou. Recuámos para junto do edifício da Câmara Municipal de Lisboa. Deitados no chão com as armas engatilhadas, ouvimos os primeiros tiros vindos dos homens de Cavalaria 7. Um Panhard e uma AML, nossos, tomaram posição no meio da praça. Nesse preciso momento vi passar, debaixo de fogo, um repórter (Adelino Gomes). A escrever num pequeno bloco que trazia na mão, correu para se abrigar numa escada. E, também a correr, um fotógrafo (Alfredo Cunha) com sua máquina fotográfica. Quando reparei, estava ao meu lado direito a fotografar. Fiquei descansado depois de perceber que estavam fora de perigo. Eles e Portugal. A Cavalaria 7 fora derrotada pela coragem do nosso capitão.
No dia seguinte, acordámos na Pontinha, sem direito a pequeno-almoço. Com a ração de combate, regressámos a Santarém. A população esperava-nos, entusiástica. Ficamos fechados no quartel até ao dia Primeiro de Maio, felizes, com uma certeza: os nossos filhos não iriam para a guerra.
Depoimento recolhido por Alexandra Tavares-Teles