Onde eu estava... por Jaime Nogueira Pinto

Onde eu estava... por Jaime Nogueira Pinto

Nasceu no Porto em 1946. É licencidado em Direito, politólogo e escritor.
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Há cinquenta anos, em Abril de 1974, estava na segunda Repartição do Estado-Maior do Exército, aguardando embarque para Angola. Vou explicar porquê.

Fui desde os meus quinze anos, desde o início da guerra de África, em Angola, um defensor convicto da ideia de um Portugal pluricontinental e plurirracial. Hoje, à luz do que aconteceu, essa ideia tornou-se um mito, ou pior, uma utopia. Talvez fosse, mas transformar o então império numa nação integrada racial e socialmente era o nosso projecto, a nossa utopia. Havia quem tivesse utopias bem piores.

As duas utopias radicais da direita e da esquerda da minha geração, a nacionalista e a comunista, acabaram em Novembro de 1975. Uma, a 11 de Novembro, com a independência de Angola e o fim do império; a outra, a 25 de Novembro, com o fim dos socialismos vários (retrato esse fim das utopias e esse outro lado da revolução num romance, Novembro, que foi agora reeditado). Depois, a partir de 1976, tivemos a democracia dominada pelo centrão, que só agora, cumpridos os mesmos 48 anos do anterior regime, começa a ser abalado.

Jaime Nogueira Pinto
Reinaldo Rodrigues/Global Imagens

Há 50 anos, estava então a aguardar embarque para Angola. Em Mafra, no Curso de Oficiais Milicianos, para onde entrei em Abril de 1973, tinha pedido uma especialidade operacional - atirador de Infantaria; mas como era míope, não fui admitido e fui para a chamada APSIC, Ação Psicológica. Ora, as mobilizações para o Ultramar eram por notas e começavam de baixo para cima, por isso, quando vi que não ia ser mobilizado, fiz um requerimento a oferecer-me como voluntário. E como, ainda assim, nunca mais me chamavam, troquei com um camarada meu - o Arnaldo Cadavez - que estava para ir para Angola, para onde só acabei por embarcar em Julho de 1974, três meses depois da revolução de Abril.

Antes de ir para a tropa, em 1973, estava a trabalhar no Banco Espírito Santo, na área internacional. Tinha casado com a Zezinha em Janeiro de 1972. No Banco ganhava 7500$00. Desde 1969 que publicava uma revista, a Política, onde colaborou praticamente toda a direita, da conservadora à radical, isto é, à nacionalista.

Entre nós, vivíamos no mundo político das direitas, sendo a nossa independente e muito crítica do regime. Víamos o salazarismo como uma oligarquia conservadora, se não reaccionária, que abandonara à esquerda os ideias da justiça social e da solidariedade, e achávamos que o ziguezague abertura-volta atrás marcelista acabaria por criar uma crise política séria em que o Ultramar se ia perder. A nossa batalha cultural era essa - e nela acabámos por ter, como aliados objetivos, a ala conservadora do regime; ou melhor, as pessoas mais preocupadas com a questão nacional, como Franco Nogueira, que nesse tempo se definia como “um republicano da Rotunda”.

Agora que, com o aproximar da efeméride, leio tudo o que “não se podia fazer” no Portugal de então, estou cada vez mais convencido que falam de outro país. Namoros, idas à praia, costumes em geral, isso tudo foram coisas que mudaram radicalmente, não com a revolução, mas em meados dos anos 60 - aqui, na Europa fora da cortina-de-ferro e nos Estados Unidos.

Lembro-me de comprar na Livraria Barata da Avenida de Roma quase tudo o que, teoricamente, não se podia ler: Marx e Lenine, Aquilino Ribeiro, Ferreira de Castro, Gustavo Soromenho, Alves Redol, Soeiro Pereira Gomes. E de ter estudado no liceu Literatura Portuguesa, talvez a mais política de todas as cadeiras, por um excelente compêndio escrito por dois filiados no Partido Comunista Português: António José Saraiva e Óscar Lopes.

Lembro-me também de ter experimentado e combatido, durante seis anos, a ditadura estudantil das esquerdas na Faculdade de Direito de Lisboa.”

Depoimento recolhido por Alexandra Tavares-Teles

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