Onde eu estava por... Isabel Pires de Lima
No final de 1969, cheguei à Faculdade de Letras da Universidade do Porto vinda de Braga, uma cidade de província fechada, clerical, socialmente muito estratificada, do seio duma família da classe média, em muitos aspectos distinta: criticava-se o regime (guerra colonial, presos políticos, censura, emigração massiva); a minha mãe tinha vida profissional; viajava-se para o estrangeiro nas férias; lia-se livros censurados e lia-se o Match, das poucas revistas estrangeiras que circulava; eu frequentava o ensino público; o meu pai reclamava-se ateu e criticava a Igreja, ao contrário da minha mãe que me educou catolicamente; valorizava-se a cultura física, educava-se para a autonomia… No mais, vivia como vivia uma menina e depois uma adolescente da classe média: um quotidiano confortável, a escola reproduzindo os valores do Estado Novo e da moral dominante, convívio social em casa de amigos e vizinhos (festas de aniversário, fim de ano, S. João…), uma ida ou outra ao cinema, sempre acompanhada, ver fitas do Cantinflas, da Marisol, mas também já A hard day’s night, as primeiras festas de garagem em que se dançava ié-ié e ouvia os Beatles, Adamo, Doors, Françoise Hardy, Frank Sinatra, Mireille Mathieu, a mini-saia acompanhada do anoraque e do casaco maxi, mas ainda não o biquíni (na recém-criada e quase deserta piscina municipal, o biquíni era proibido), nem calças compridas, proibidas no liceu feminino.
Chegar à Universidade em 1969/70 significou chegar depois dos Maios de 68, o francês e o nosso, o da agitação estudantil dessa década em Coimbra e Lisboa. Isto é, a minha geração já não entrou “inocente” na Universidade e, no meu caso, o ambiente familiar ajudara muito: lembro-me por exemplo de ver, no Match, imagens de Maio de 68, que não passavam na televisão.
A Universidade, ainda sede hierática do saber, surgia também, para alguns que a contestávamos, como espaço de liberdade, de convívio, onde coisas podiam acontecer e aconteciam: meetings, invasões da polícia, R.G.A., discussões que separavam águas entre fascistas e revolucionários, entre revolucionários e mais revolucionários ainda, etc. Recordo a brilhante voz do ideólogo revolucionário, Pacheco Pereira, perorando para as massas da escadaria do velho edifício das Letras; recordo, em contraponto, um Sotto Mayor, líder dos apoiantes do regime, o qual recusar-se-ia, no 25 de Abril, a cumprir ordens superiores de disparar dum tanque militar contra as forças revoltosas…
Além da Universidade, havia os cafés – o “institucional” Piolho, onde todas as discussões prosseguiam depois ou em vez das aulas – sob a atenção da PIDE que convidava a “dispersar” e ainda, no meu caso, também o Orfeu, na Boavista, onde se cruzavam estudantes, advogados, jornalistas, num pot-pourri ideológico curioso. E como espaços culturais estimulantes havia a cooperativa Árvore, as livrarias Unicepe e Leitura, que a PIDE gostava de “visitar”. Para além disso, havia o festival da canção, o rali de Portugal, o cinema possível, futebol e fado, muito fado…
E havia muitas flores nos cabelos, muita música no ar, muitos sonhos hippies de paz e amor, muito desejo de liberdade sexual com a pílula a chegar – houve até, em Vilar de Mouros, um Woodstock à portuguesa onde estive – mas havia, entretanto, o espetro da guerra colonial, o ativismo pacifista contra a guerra no Vietnam. Para mim, houve a primeira viagem sozinha a França, para um curso de férias, onde convivi com jovens de todo o mundo e conheci um judeu holandês que me falou de outra guerra: o conflito israelo-palestiniano.
Havia, enfim, os ingredientes suficientes para gritarmos, como em Maio de 68: “Vamos ser realistas e pedir o impossível.”
O impossível chegou no 25 de Abril com as flores que a primavera e os tempos pacifistas pediam.
Depoimento recolhido por Alexandra Tavares-Teles.