Onde eu estava por... Isabel Pires de Lima

Onde eu estava por... Isabel Pires de Lima

Professora emérita da Universidade do Porto. Doutorada em Literatura Portuguesa, nasceu em Braga em 1952.
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No final de 1969, cheguei à Faculdade de Letras da Universidade do Porto vinda de Braga, uma cidade de província fechada, clerical, socialmente muito estratificada, do seio duma família da classe média, em muitos aspectos distinta: criticava-se o regime (guerra colonial, presos políticos, censura, emigração massiva); a minha mãe tinha vida profissional; viajava-se para o estrangeiro nas férias; lia-se livros censurados e lia-se o Match, das poucas revistas estrangeiras que circulava; eu frequentava o ensino público; o meu pai reclamava-se ateu e criticava a Igreja, ao contrário da minha mãe que me educou catolicamente; valorizava-se a cultura física, educava-se para a autonomia… No mais, vivia como vivia uma menina e depois uma adolescente da classe média: um quotidiano confortável, a escola reproduzindo os valores do Estado Novo e da moral dominante, convívio social em casa de amigos e vizinhos (festas de aniversário, fim de ano, S. João…), uma ida ou outra ao cinema, sempre acompanhada, ver fitas do Cantinflas, da Marisol, mas também já A hard day’s night, as primeiras festas de garagem em que se dançava ié-ié e ouvia os Beatles, Adamo, Doors, Françoise Hardy, Frank Sinatra, Mireille Mathieu, a mini-saia acompanhada do anoraque e do casaco maxi, mas ainda não o biquíni (na recém-criada e quase deserta piscina municipal, o biquíni era proibido), nem calças compridas, proibidas no liceu feminino.

Chegar à Universidade em 1969/70 significou chegar depois dos Maios de 68, o francês e o nosso, o da agitação estudantil dessa década em Coimbra e Lisboa. Isto é, a minha geração já não entrou “inocente” na Universidade e, no meu caso, o ambiente familiar ajudara muito: lembro-me por exemplo de ver, no Match, imagens de Maio de 68, que não passavam na televisão. 

A Universidade, ainda sede hierática do saber, surgia também, para alguns que a contestávamos, como espaço de liberdade, de convívio, onde coisas podiam acontecer e aconteciam: meetings, invasões da polícia, R.G.A., discussões que separavam águas entre fascistas e revolucionários, entre revolucionários e mais revolucionários ainda, etc. Recordo a brilhante voz do ideólogo revolucionário, Pacheco Pereira, perorando para as massas da escadaria do velho edifício das Letras; recordo, em contraponto, um Sotto Mayor, líder dos apoiantes do regime, o qual recusar-se-ia, no 25 de Abril, a cumprir ordens superiores de disparar dum tanque militar contra as forças revoltosas…

Além da Universidade, havia os cafés – o “institucional” Piolho, onde todas as discussões prosseguiam depois ou em vez das aulas – sob a atenção da PIDE que convidava a “dispersar” e ainda, no meu caso, também o Orfeu, na Boavista, onde se cruzavam estudantes, advogados, jornalistas, num pot-pourri ideológico curioso. E como espaços culturais estimulantes havia a cooperativa Árvore, as livrarias Unicepe e Leitura, que a PIDE gostava de “visitar”. Para além disso, havia o festival da canção, o rali de Portugal, o cinema possível, futebol e fado, muito fado…

E havia muitas flores nos cabelos, muita música no ar, muitos sonhos hippies de paz e amor, muito desejo de liberdade sexual com a pílula a chegar – houve até, em Vilar de Mouros, um Woodstock à portuguesa onde estive – mas havia, entretanto, o espetro da guerra colonial, o ativismo pacifista contra a guerra no Vietnam. Para mim, houve a primeira viagem sozinha a França, para um curso de férias, onde convivi com jovens de todo o mundo e conheci um judeu holandês que me falou de outra guerra: o conflito israelo-palestiniano.

Havia, enfim, os ingredientes suficientes para gritarmos, como em Maio de 68: “Vamos ser realistas e pedir o impossível.”

O impossível chegou no 25 de Abril com as flores que a primavera e os tempos pacifistas pediam.

Depoimento recolhido por Alexandra Tavares-Teles.

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