Onde eu estava... por Io Appolloni

Onde eu estava... por Io Appolloni

Nasceu em 1945, em Camino di Verchiano, Perúgia, Itália. Cresceu em Roma. Chegou a Portugal há 59 anos. É atriz.
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Tinha 20 anos quando cheguei a Portugal, já então com estatuto de vedeta. Dançava, cantava, representava e ainda mostrava as pernas, um belo par de pernas, por sinal. Vim a convite de um empresário do teatro, convencido definitivamente por uma reportagem que a revista Plateia fez comigo, era eu atração internacional no casino de Gibraltar.

Corria 1965. Em contraste com Madrid, onde tinha trabalhado várias vezes, Lisboa pareceu-me uma cidade enfadonha e sem cor. Porém, habitada por gente extraordinária.

Aterrei aqui sem perceber nada de política. Sem noção de que estava num país sob ditadura. Só em 1972, o ano em que iniciei o meu relacionamento amoroso com Eduardo Geada, homem cultíssimo e muito politizado, percebi o que se passava à minha volta. A censura.

Decisivo nesse meu despertar, Eduardo fora-me apresentado por Artur Semedo, num jantar inesquecível em que me atirei a ele, rapaz lindo, tímido e reservado, de uma maneira descarada. Vergonhosa, diria, para a época. Não para mim, uma mulher que se considerava livre. Ele foi à minha escola. Comecei a perceber o que era o fascismo, o que era machismo - foi a mim que a PIDE deu 48 horas para deixar o país quando soube que eu andava com um homem casado. A culpa, naturalmente, era da amante.

Apaixonei-me por Camilo de Oliveira pouco depois de chegar a Portugal. Não havia o divórcio. Quando fui chamada à António Maria Cardoso, amigos meus muito próximos de Silva Pais, diretor da PIDE, intercederam. Ficou tudo em águas de bacalhau.

Devo dizer que Camilo sempre me apoiou. Saiu de casa mal começou a andar comigo. Devo ainda dizer que não senti a reprovação do meio. Todos perceberam. O que começou por ser uma brincadeira acabou numa paixão assolapada, uma forte atração sexual que é, como se sabe, um motor poderoso.
Não nos escondíamos. Frequentávamos o Porão da Nau, uma boîte do Vasco Santana, junto ao Saldanha. Ali ceávamos e dançávamos até às três da manhã.

Mas, repito, na moral vigente não deixava de ser a ilegítima.

Engravidei. Nessa altura, faltava-me preparação para ser mãe. Decidi, com Camilo, fazer um aborto. Clandestino, naturalmente. Ao medo da morte juntava-se o medo da denúncia. Sabia que podia ser presa, embora a prática estivesse longe de ser rara. Não conhecia médicos nem enfermeiras que pudessem ajudar-me. Fiz um aborto sem anestesia e higiene necessárias. Correu muito mal - o abordo clandestino atirou-me para uma cama do Hospital de Santa Maria durante um mês e três dias. O Camilo ia ver-me todos os dias. Os meus colegas também. Os médicos que me socorreram não apresentaram queixa. Voltaria a engravidar em 1968, numa visita de Camilo a Madrid onde então eu estava a trabalhar. Decidi ter o meu filho. Quem mandava no meu corpo era eu.
Escondi essa relação dos meus pais. A religiosidade da minha família marcou a minha infância. Aos 11 anos queria ser freira. Filha e irmã de acordeonistas, tinha 15 anos quando decidi que seria atriz. Matriculei-me no Centro Experimental de Cinematografia (onde cheguei a conhecer Elizabeth Taylor e Richard Burton, então a filmar Cleópatra). Quando soube, a minha mãe fechou-me em casa durante 20 dias. Tive então de explicar aos meus pais que seguiria aquele caminho nem que tivesse de esperar pelos 21 anos.

A 24 de abril de 1974 estava em Elvas, com uma tournée. Na manhã de 25 avisaram-nos que estava a acontecer uma revolução em Lisboa. Desses dias, lembro-me de descer a Avenida (mais do que nunca) da Liberdade a correr. Feliz.

Depoimento recolhido por Alexandra Tavares-Teles

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