Onde eu estava... por Ilda Figueiredo
Nos primeiros meses de 1974 vivi momentos de profundas contradições resultantes de ter conseguido alguma realização pessoal de projetos de vida pelos quais muito tinha lutado, mas também de enorme preocupação com a continuação da guerra colonial, onde estava o meu irmão, e as consequências do despedimento sem justa causa que envolvia o pai dos meus dois filhos, muito crianças ainda.
Oriunda de uma família de raízes camponesas, foi com muito empenho familiar que, na segunda metade da década de sessenta, tirei o curso do magistério primário e fui dar aulas como professora primária, mudando de Aveiro para Vila Nova de Gaia, de forma a realizar um sonho - poder estudar na Faculdade de Economia enquanto trabalhava - e, mais tarde, criar dois filhos, que nasceram nesse período de trabalho e estudo universitário como aluna voluntária, cujo curso de economia acabei em junho de 1973, com muito esforço e o apoio solidário de colegas que me emprestavam os apontamentos das aulas teóricas.
O tempo livre era muito escasso, mas, sobretudo na universidade, viviam-se as revoltas de estudantes e a intervenção da polícia. Aconteceu-me, mais do que uma vez, ao fim da tarde, depois de sair das aulas da escola primária, em Gaia, chegar à universidade, no Porto, junto da praça dos Leões onde funcionava a velha Faculdade de Economia, e encontrar tudo fechado, com a polícia a controlar as passagens. Uma vez, só não fui presa por estar no final da gravidez, mas assisti à prisão de colegas levados à força para uma carrinha. De registar que, nesse tempo complicado, até o uso de calças, na escola primária onde dava aulas, era proibido, como uma vez me avisou a diretora da escola.
Entretanto, no final de 1973, fui admitida na antiga Escola Comercial Oliveira Martins, onde encontrei alguns professores antifascistas, ligados à formação do grupo de estudos de professores, que me foram falando das reivindicações e das lutas mais vastas. Era em conversas de café, às vezes no Piolho, no Orfeu, no Estrela que íamos conversando, trocando livros, informações.
Nesses primeiros meses de 1974, vivia-se, com algum entusiasmo e esperança, todo o debate e a oposição que a continuação da guerra colonial estava a suscitar, incluindo no estrangeiro. Embora o assassinato de Amílcar Cabral, em janeiro de 1973, tenha criado preocupações, tal como o golpe fascista de Pinochet no Chile, ainda se faziam sentir as repercussões da audição que o Papa Paulo VI tinha concedido aos líderes africanos Agostinho Neto, Amílcar Cabral e Marcelino Santos, em 1970.
Nalguns momentos mais disponíveis ia acompanhando a publicação de alguns discos e, por vezes, conseguia-se ouvir canções de protesto incluindo de José Afonso e Adriano Correia de Oliveira, cujos discos fui comprando quando saiam. O meu especial interesse pela poesia permitiu-me a leitura de livros de Eugénio de Andrade, Manuel Alegre, Egito Gonçalves, Natália Correia e outros, com as idas à UNICEPE e livraria Leitura, onde cheguei a comprar um livro de Vladimir Ilych Ulianov (a PIDE, ou pelo menos alguns agentes locais, desconheciam que era o verdadeiro nome de Lenine). É também desse período a minha primeira publicação de poemas em jornais locais e no suplemento juvenil do Diário de Lisboa.
Com os filhos, que durante o dia estavam no infantário, aproveitava-se os fins de semana para os passeios nos jardins e o parque de campismo, no verão, para ir à praia (Madalena e S. Jacinto) ou uma casa alugada, com os pais, na praia da Barra, na zona de Aveiro.
O golpe falhado de 16 de março de 1974 criou novamente algumas preocupações e desalentos que se procurava vencer com a música, a poesia e as conversas e informações que íamos tendo nos cafés. A alegria do 25 de Abril de 1974 já estava muito próxima, embora ainda o não soubéssemos, mas pressentíamos, tal era o desejo que acontecesse.”
Depoimento recolhido por Alexandra Tavares-Teles