Onde eu estava... por Eduardo Teixeira de Sousa
"Os dias de janeiro de 1974 eram passados como aluno da 1.ª classe na Escola Francesa do Porto, a uma curta viagem de camioneta da casa de família, um apartamento no Campo Alegre. Já sabia ler: lia o Pato Donald e o Jornal de Notícias. A Rosa, cozinheira septuagenária, era analfabeta e lia-lhe os nomes que apareciam na coluna da necrologia.
O nosso andar parecia pequeno e mais silencioso depois dos primeiros passos em casas bem maiores e em regime de clã alargado, que haveria de se fragmentar pela política uns meses depois; nessa altura, apesar de ser sabido que lá em casa se era contra o regime, ainda não tinha idade para saber que éramos da oposição, embora já partilhasse de um espírito generosamente anticlerical - incluindo a quinta do meu bisavô em Barcelos, das quais guardo memórias vivas de dias rodeado de tias, visitas da casa, prendas e doces.
A minha mãe, ainda que absorvida pelos panos e fraldas do meu recém-nascido e único irmão sempre ia conseguindo algum tempo para me contar histórias e me orientar as leituras, enquanto procurava tempo para retomar os seus estudos, interrompidos com o casamento. O meu pai - a reto- mar a carreira médica atrasada pela ausência de anos em serviço militar na Guiné - estava finalmente presente.
Na vida familiar sucediam-se as visitas, incluindo as estadias prolongadas de uma ou outra das tias-avós de Lisboa, que traziam compotas e conseguiam sempre deixar terminada uma nova camisola de malha, das que picavam no pescoço. As brincadeiras eram partilhadas com muitas outras crianças e incluíam várias novidades: Legos mais elaborados, pistolas de fulminantes espanholas, exércitos de plástico coloridos.
Brincando lá fora, o momento era o de emular as aventuras dos Pequenos Vagabundos, uma série francesa que passava aos sábados na televisão a seguir aos cartoons do Vasco Granja [na verdade, o programa de "desenhos animados" de Granja só se iniciou após o 25 de Abril, mas ainda em 1974]. Ao lanche, com sorte, haveria pastéis de chila, éclaires, bolas de Berlim; e uma ou outra laranjada. Uns meses antes, no Café Moderno havia aparecido uma maquineta de diversão elétrica em que me deixavam jogar duas partidas de cada vez por um escudo: chamava-se Pong. Às quartas-feiras à tarde era dia de ir ao cinema. No S. João, Batalha, Águia D’Ouro, Trindade, Rivoli, Terço. Não sei que estaria em cartaz há 50 anos: Mary Poppins, Dumbo, Cinderela, talvez algum Tótó? Penso que o hábito, que prolonguei até à idade adulta, foi formado nesta fase.
Não me recordo de tédio nos momentos de silêncio: desde o tratar do canário à releitura sucessiva de Disney, Astérix e Tintim, a mais uma narração de um dos álbuns de fotografias da família, havia com que me entreter, num tempo em que os adultos pareciam ter outro tempo para falar connosco.”
Texto recolhido por Alexandra Tavares Teles