Onde eu estava... por Conceição Rosa Gonçalves
Passei o mês de fevereiro de 1974 em Paris, empregada doméstica em casa de uma senhora que alugava quartos. O meu era um dos mais pequenos: havia uma cama, uma mesa com duas cadeiras e um fogão. A casa de banho era fora, ao fundo de um corredor. Trabalhava para essa senhora cinco horas diárias, duas das quais serviam para lhe pagar a renda.
A patroa tinha duas vantagens: permitia-me viver e trabalhar no mesmo prédio - não tinha de andar em transportes numa cidade tão grande - e prometia arranjar os papéis para a minha legalização.
Passados uns meses, cumpriu. Mal me vi legalizada, fui de imediato à procura de trabalho complementar. Depressa consegui mais uma horas em casa de um casal jovem, sem filhos.
As patroas tratavam-me por madame. Acho que em dois anos de França, nunca chegaram a saber o meu nome. E eu, sem falar uma palavra da língua delas, sempre me fiz entender, muitas vezes por gestos.
Fui para França em 1972 com o meu namorado, mais tarde meu marido (com casamento pelo civil, que nunca fomos de igrejas). Juntámo-nos tinha eu 18 e ele 28 anos. Apesar de muito triste com a minha situação “ilegítima” e temendo o falatório na aldeia, quando decidimos emigrar a minha mãe aceitou ficar com o meu filho de dois anos de idade.
Em Paris, o meu marido trabalhava numa empresa de chauffage. Não era mau trabalho, sobretudo para quem vinha de uma vacaria na Suíça e se estafara numa fundição de aço alemã, um calor que o ia matando. Nunca me arrependi de me ter juntado com ele. As muitas dificuldades nunca nos separaram. Estamos juntos há 54 anos.
Em Paris chorei muito com saudades do nosso filho, pouco resignados com a ausência. As saudades da terra e da família eram atenuadas com a comida portuguesa que nunca deixei de fazer.
Em Paris tremi de frio. Nos dois anos em que lá vivemos não comprei uma peça de roupa.
Sou filha de um alentejano guardador de vacas e de ovelhas. A minha mãe, com sete filhos para criar, trabalhava em casa. Ambos eram analfabetos. Eu pouco mais aprendi (só depois do 25 de Abril fiz o ciclo primário).
No final da 1.ª classe fui trabalhar. Fazer camas e servir almoços numa hospedaria de Castro Verde. A minha mãe contava-me que terei tido em pequena uma boneca de trapos. Não me lembro. Nem da boneca, nem de brincar. Só me lembro de arrumar quartos e lavar pratos.
Tal como eu, Manuel, o meu marido, nasceu em Castro Verde. Nem três meses esteve na escola. Aprendeu o pouco que sabe ler à custa dele. Conta-me que passou fome. Ficava à espera de que o lavrador acabasse a refeição para ficar com as sobras. Tantas noites sem nada para comer, ele e os seis irmãos.
Em França convivíamos com o meu cunhado que já lá vivia há uns anos. Foi ele quem arranjou trabalho ao meu marido, perto dos Campos Elíseos. Paris é muito bonita quando há tempo para a apreciar. Eu não tinha esse tempo porque no final do mês era preciso mandar à minha mãe o sustento para o menino.
As saudades cresciam. De tal maneira se tornaram insuportáveis que nos inícios de 1974 andávamos à procura de um quarto maior. Tínhamos de viver com o nosso filho. Mas dois meses depois veio o 25 de Abril e logo quisemos regressar a Portugal. Não fosse a revolução e teríamos ficado por lá o resto da vida. Ainda hoje, falar destes tempos comove-me muito. Quero só acrescentar que nunca quis mal ao meu país. Apenas às pessoas que nos obrigavam a ser tão pobres. E a estar de boca fechada.
Depoimento recolhido por Alexandra Tavares-Teles