Onde eu estava por... António Janela

Onde eu estava por... António Janela

Nasceu em março de 1941, em Luanda. Atualmente pároco do Coração de Jesus, Lisboa, promoveu no Estado Novo os ares do Concílio Vaticano II.
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Luanda, 1953. À sombra de uma árvore que havia perto do ringue de hóquei em patins no Liceu Salvador Correia, liceu mais bonito que conheci, um grupo de alunos aproveitava um ‘furo’ para discutir o futuro de Angola. Imagine-se o atrevimento - um bando de pré-adolescentes, em que eu me incluía, a pensar aquele país fora dos cânones coloniais.  Ainda não marcado por jovens adultos meus vizinhos e escritores como Luandino Vieira, António Cardoso e António Jacinto, autor do poema mais reivindicativo de toda a língua portuguesa - Monangamba -, mais tarde desterrados no Tarrafal, virei-me então para um dos presentes, colega de turma e mestiço, e vaticinei: “Ainda hás de ser presidente de Angola.” O rapaz a quem me dirigi era Bento Ribeiro, mais tarde ministro e diplomata de Angola, já então muito estimado por nós, filho de um homem igualmente conceituado, funcionário muito competente do Banco de Angola, merecedor de pertencer à gerência a que nunca ascendeu, ‘barrado’ pela cor da pele.

Lembrar-me-ia deste episódio mais de duas décadas depois, chegada que estava a Revolução dos três D: Democratizar, Descolonizar, Desenvolver.

A docência apareceu muito cedo na minha vida. Após a ordenação (1965), fiquei de imediato numa equipa de padres nomeados professores de Religião e Moral em liceus em Lisboa, coordenada na Capela do Rato pelo saudoso padre Alberto Neto, que acabaria assassinado em 1987. Religião e Moral era uma disciplina que permitia mais liberdade de intervenção, resultado dos ares que chegavam do Concílio Vaticano II. Abertura que ia além dos aspetos religiosos, implicando uma formação mais participativa. O Liceu D. João de Castro era um dos mais abertos da altura. Já aí, no meu tempo de aluno, em meados dos anos 50, se destacava com um ensino marcado por alguns dos meus docentes, como Fernandes Fafe, que em Organização Política e Administrativa da Nação (OPAN) abriu horizontes a não poucos jovens.
Tinha eu dois anos de ordenação e assistente religioso da Acção Católica (JEC) quando se dá um acontecimento que deixaria marcas profundas - as cheias de 1967. A tragédia mudou consciências, mobilizou estudantes universitários e liceais, que pela primeira vez tomaram contacto com a situação terrível dos mais desfavorecidos.  

Em abril de 1974 vivia na Baixa de Lisboa, na Casa Paroquial da Igreja de São Nicolau, chegado de Roma, para onde havia sido mandado estudar Ciências Sociais, em 1969, pelo então patriarca Gonçalves Cerejeira. A minha ida para Roma terá tido uma causa. Com Marcello Caetano, o regime prometia uma primavera. A chamada “primavera marcelista”. Acreditando que era assim, empenhei-me, enquanto professor de Religião e Moral, na educação democrática dos meus alunos no 3.º ciclo em coisas tão simples quanto promover a eleição do chefe de turma. Já depois de ter participado, na Igreja de São Domingos, na Vigília do 1.º Dia Mundial da Paz (1969), criação do Papa Paulo VI, acabei com um processo disciplinar, e talvez a “gota de água” tenha sido uma carta que escrevi a explicar por que razão entendia não dever estar presente na tomada de posse do comissário da Mocidade Portuguesa, também ele professor no mesmo Liceu D. João de Castro. Impedido de continuar a ser professor, a ida para Roma foi o chamado “pontapé pela escada acima”.

No dia 25 de abril acordei com o telefone a tocar. A minha irmã, casada com um oficial da Marinha, pedia-me que não saísse de casa. Estranhando o movimento na Baixa de Lisboa, logo telefonei ao padre Alberto Neto para saber o que estava a passar-se. Liguei a telefonia. Ao fim da tarde dirigi-me ao Largo do Carmo. Ouvi a intervenção de Francisco Sousa Tavares. Vi sair a chaimite que transportava Marcello Caetano. Percebi que seria a rendição. E veio, ao fim de alguns dias, aquele inesquecível 1.º de Maio!

O papel dos católicos na luta pela liberdade e no 25 de Abril é uma história que se vai estando a fazer. Dela, e a diferentes níveis de intervenção, eu destacaria três figuras de eclesiásticos: D. António Ferreira Gomes, bispo do Porto, exilado durante 10 anos, o jesuíta e professor universitário padre Manuel Antunes e o meu patriarca, D. António Ribeiro, que sempre me apoiou desde o Caso da Capela do Rato e nos tempos agitados do PREC. Aos três presto homenagem.
 
Depoimento recolhido por Alexandra Tavares-Teles.

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