O mês de fevereiro de 1974 começa comigo em Luanda, onde vivo desde os quatro anos. Tenho doze. Sou a do meio de três filhos. Os meus pais, barbeiro e dona de casa, são oriundos de uma aldeia transmontana, onde também nasci. .Fevereiro de 1974 na minha memória significa gelados Baleizão. Em fevereiro, Luanda é quente e húmida. E todos os domingos, o mesmo ritual: a ida à gelataria Baleizão, a família toda na mota Honda do meu pai (em Luanda viam-se muitas famílias em cima de motas), comer um gelado artesanal. .Fevereiro de 1974 significa também pratos de marisco barato, Coca-cola, a marginal de Luanda onde se faziam corridas de automóveis e desfiles de Carnaval. Prédios altos. Muito calor e os banhos de chuva no nosso quintal, onde havia cachos de bananas e grades de cerveja Cuca. .De fevereiro de 1974 recordo a minha rua, de terra batida, onde corria em trotinete feita pelos meus irmãos. As mini saias plissadas, blusas de alças e sandálias compradas em segunda mão. Os passeios de machimbombo com a minha mãe. Os xaropes de cacto para a tosse, o alho com sal e azeite para as lombrigas..A barbearia do meu pai, onde os meus irmãos iam à força rapar o cabelo como castigo pelos disparates que faziam em casa e na escola. .A professora do ciclo, também minha explicadora, de palmatória na mão - uma trave grossa de madeira com buracos. As idas ao estrado, escrever no quadro de ardósia os rios da metrópole que eu não fazia ideia onde era. As vergastadas que deixavam as pernas vermelhas, marcas que tentava esconder da minha mãe com medo de apanhar mais, sempre que cometia algum erro. .A estalada do pai quando dizíamos que não comíamos a sopa ou quando afirmei que me recusava a vir para a metrópole..Vim e vim mesmo. Aos cuidados de uma aeromoça, cheguei ao aeroporto de Lisboa sem conhecer nenhuma das pessoas que estariam à minha espera. A segunda metade de fevereiro de 1974 começa comigo em Trás-Os-Montes. Na casa do avô paterno. Recordo-me do frio e das pessoas deitarem fumo pela boca não estando a fumar. Aquilo intrigava-me. .Gostava das montanhas que nunca tinha visto. Falava com raparigas que não sabiam o que era o mar. Não ia à escola. Levantava-me às seis da manhã e ia com os meus avós e a burra para os campos. .Não comia fruta. Andava com muita roupa. As mulheres não vestiam calças. Nunca mais comi muamba de galinhas. Nem bebi leite em pó NIDO. Só leite acabado de sair da vaca. .Em Trás-Os-Montes, os serões eram passados na cozinha ao lume, com pessoas mais velhas que achavam que eu fazia muitas asneiras. Os meus avós chamavam-me de terrorista. .Um ano depois, em fevereiro de 1975, viria para Lisboa, para casa de uma outra avó. Arranjei emprego numa fábrica. Nunca mais deixei a cidade.” Depoimento recolhido por Alexandra Tavares-Teles