Onde eu estava... por Abel Porto

Onde eu estava... por Abel Porto

Nasceu em 1940 em Angueira, Distrito de Bragança. Em 1974 era Guarda Fiscal no Alentejo.
Publicado a
Atualizado a

Guardo de há 50 anos a imagem mais forte: o nascimento da minha segunda filha - a mais velha tinha 3 anos -, a que curiosamente não assisti. É, portanto, uma imagem muito querida, mas apenas imaginada. A minha mulher vivia em Angueira, aldeia do Distrito de Bragança e eu no Alentejo.

Era Guarda Fiscal. Depois de uma passagem pelo Algarve, fui ali colocado, mais precisamente a poucos quilómetros do Alandroal. E a 500 metros do rio que era foco principal da nossa atenção, à cata de contrabandistas. Competia àquela meia dúzia de homens vigiar praias e fronteiras, à procura de homens e miúdos cheios de fome.

Essa é outra imagem forte que retenho daquele tempo. E essa via-a com os meus olhos: a pobreza. Não me lembro de ter detido um daqueles homens, daqueles miúdos que tentavam fazer pela vida, atravessando o pequeno rio em frágeis barquitos. Numa dessas rondas, avistei um. “Anda cá, rapaz.” O adolescente chegava do lado espanhol. Fugiu-me, abandonando a carga - quatro foices, um par de chinelos e dois quilos de polvo para o Natal.

De Portugal para Espanha, a mesma insignificância. Uns quilos, poucos, de café. Nunca prendi ninguém. Tinha vergonha de levar aqueles homens ao posto. Fugiam, deixavam o que levavam. Uma miséria.

O Alentejo era de meia dúzia. Gente com uma, duas e três herdades. Centenas de porcos, de perus. Gente abastada. Os outros sem nada. Sopas de água e pão. Eu vinha de Trás-os-Montes. De uma aldeia onde a pobreza também era muita. A pobreza, o analfabetismo, a doença. Tinha de ser solidário. 
Sou filho único. Meu pai morreu em África antes de eu nascer. Não foi fácil a minha vida para poder chegar a Guarda Fiscal. Tive de percorrer o país. Longe da família, em sítios onde não passava vivalma. 

No Alentejo morria de saudades da minha mulher e das minhas filhas. O mês de licença não chegava para nada. E a minha mulher não podia deixar crianças e lavoura - cegadas, a matança do porco, etc. - para me visitar. 

Naquele posto vivíamos isolados. Apenas a visita semanal do merceeiro, um homem franzino, sempre descalço, que nos levava carne e legumes, vinho e correio numa carroça de rodas de ferro, puxada por um burro magrito.

Muitas cartas escrevi à minha mulher. De vez em quando ouvia-lhe a voz através do telefone, uma cabine pública, única em toda a aldeia.

No Alentejo não havia diversão. De vez em quando, íamos a Vila Viçosa ou a Elvas na carrinha de um dos ricaços da terra. Esse tinha a mania dos carros. Comprava o último modelo. Era o nosso salvas vidas. 

Só depois do 25 de Abril consegui aproximar-me de casa. Sabia bem que vivia em ditadura. Hoje, aos 83 anos, nenhuma atitude minha como Guarda Fiscal me pesa na consciência. Nunca apanhei na fronteira nenhum rapaz que quisesse passar a salto para fugir ao regime e à tropa. Se vi algum, não me lembro. 
Hoje passo os dias a cuidar das minhas vacas. Agora, não tenho as que tinha, vendi algumas porque na minha idade já vai doendo um joelho.

Depoimento recolhido por Alexandra Tavares-Teles

Artigos Relacionados

No stories found.
Diário de Notícias
www.dn.pt