Onde eu estava... Luís Filipe Pavão
Naquele tempo, era um privilegiado. Gráfico no grupo do jornal O Século trabalhava com grandes nomes do jornalismo português, grandes diretores, grandes fotógrafos, alguns deles nomes incontornáveis do dia 25 de Abril, como Alfredo Cunha e Eduardo Gageiro. Convivia com Maria Antónia Palla, Antónia Fiadeiro e Antónia de Sousa, mulheres que a par de Maria Lamas e Etelvina Lopes de Almeida, corridas pela PIDE, formavam o núcleo central da revista Modas & Bordados. Lidei com Diana Andringa e Ruben de Carvalho, chefe de redação da Vida Mundial, a primeira publicação do grupo para a qual trabalhei.
Sempre, mas ainda mais naquele tempo de ditadura, trabalhar no jornalismo era um ato de cidadania imprescindível. Havia que contornar a censura, cultivar a arte de saber escrever para a censura. E havia autênticos especialistas nessa matéria. Era fundamental dar aos homens do lápis azul um isco, leia-se dois ou três parágrafos excessivos, propositados, de maneira que fossem esses e só esses a chamar-lhes a atenção, desviando-lhes o olhar do que na verdade interessava fazer passar - a notícia.
Entre os censores havia de tudo: espertos e burros que nem um calhau. Estes últimos eram os que mais davam trabalho, deitando várias vezes páginas inteiras abaixo. Era por isso fundamental ter piquetes prontos a substituir os textos e, até, alguns trabalhos em gaveta, de maneira que o fecho não se atrasasse muito mais. Quando por acaso as máquinas já estavam a imprimir, esses exemplares eram enviados para as colónias.
Com ou sem atrasos provocados pela censura, o jornal fechava muitas vezes de madrugada. Recordo com muita saudade as passeatas na lambreta do Ruben de Carvalho, eu no lugar do pendura, até à Avenida da Liberdade, onde um homem vendia sandes e pão com chouriço ainda quentes, guardados numa maleta. E os pequenos-almoços às 6 da manhã no Cacau da Ribeira.
O Século era o meu mundo: um tio meu ajudara à sua fundação, o meu pai trabalhava na tesouraria, o meu sogro dirigia uma secção do pessoal e ali encontrei a mulher com quem me casaria. Sou o quarto de seis filhos, três rapazes e três raparigas. Depois de 4 anos de disciplina rígida num colégio interno em Tomar regressei a casa para prosseguir os estudos nos Salesianos do Estoril e na António Arroio onde, dando asas ao meu gosto pelas artes, tirei o curso de desenhador-litógrafo.
Com 20 anos entrei para tropa. Recordo a recruta na Carregueira, mais por ter sido companheiro de Nené, o jogador do Benfica, do que propriamente porque me obrigasse a um grande esforço físico. Com a experiência acumulada em O Século estava previsto ir para desenhador do Jornal do Exército, fugindo assim à guerra colonial, pesadelo dos jovens daquele tempo. Acontece que havia um pide no jornal. Esse homem, por não gostar de mim, conseguiu que eu fosse mobilizado para Timor, enorme desilusão tanto mais que estava já casado e à espera de um filho. Mas, menos mal: como desenhador gráfico fui fazer o jornal de Timor, onde estive 27 meses. A viagem foi um horror. Com o Canal do Suez interdito em consequência da Guerra dos Seis dias, que opôs Israel a vários países árabes, o barco teve de dar a volta por Moçambique. Resultado: 45 dias no mar, a bordo de uma embarcação imprópria para seres humanos. Muitos militares entraram para o porão na partida e só saíram do porão em Timor.
Porém, pior sorte teve o Ruben. Graças à PIDE, foi para Angola, para uma guerra que considerávamos injusta.
De regresso a Portugal e a abril de 1974: fumava-se SG filtro, almoçava-se e jantava-se no Bairro Alto. Entre os jornalistas, havia uns zunzuns sobre um possível golpe de estado de direita. Garantia-se que alguns generais tinham tanques no quintal. Felizmente, a 25 de abril não foi Kaúlza de Arriga quem saiu à rua. Foi a liberdade”.
Depoimento recolhido por Alexandra Tavares-Teles