Onde eu estava... Lucília Tavares Pereira

Onde eu estava... Lucília Tavares Pereira

Lucília Tavares Pereira completará 93 anos em 17 de fevereiro. Nasceu na Arrifana, aldeia do Ribatejo. Tem cinco filhos - entre eles o dirigente do Livre Rui Tavares -, cinco netos e seis bisnetos.
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Há 50 anos eu tinha 43. Vivia em Lisboa, na rua Braamcamp Freire. Tinha já os meus três filhos, mais dois enteados, filhos do primeiro casamento do meu marido, que enviuvara muito cedo. 

Apesar de ter a quarta classe - fiz o exame em Lisboa, já adulta -, e o curso de estenografia e datilografia, também tirado na capital, tantos miúdos e afazeres domésticos não me permitiam trabalhar fora e casa. E fazia-nos falta. O meu marido, contínuo no Crédito Predial, ganhava mil escudos por mês e nós pagávamos de renda de casa 600 escudos. Portanto, a vida não era fácil. Exigia muita economia. Quantas vezes evitei cruzar-me na banca da peixeira com senhoras que eu sabia serem mães de colegas dos meus filhos. Porque eu costumava comprar apenas chicharro ou sardinha. 
Por isso, em 74, o meu marido completava o salário no banco trabalhando à noite como chauffeur de praça. Por cada 100 escudos recebia 20. E com esse dinheiro íamos ao talho. 

Em solteira era uma flausina, gostava de me vestir com coisas bonitas. Depois de casada, mudei um bocadinho. Em 1974, as roupas dos meus filhos e as minhas eram feitas por mim. 

Em 1974 tínhamos carro. Um Hillman que aos fins de semana nos levava a Arrifana, no Ribatejo, e a uma casa que pouco a pouco fomos recuperando. O Hillman foi o primeiro carro da aldeia. 

Nasci na Arrifana em 1931. A minha mãe era uma mulher com visão. Tinha a quarta a classe - era das poucas pessoas da aldeia que sabia ler e escrever. Não aceitava a injustiça em que se vivia. Não gostava de Salazar. Veria um filho ser preso pela PIDE. Filha de um carpinteiro, também ele contra o regime, teve uma mocidade melhor do que a dos filhos. Desde logo porque enviuvou muito cedo, com oito filhos. 

Aos 17 anos fui servir para Lisboa. Tratavam-me bem, mas não deixava de ser a criada. Detestava o avental branco. Em 12 anos naquela casa nunca o levei à rua. Sabia que os rapazes se iam meter comigo. Via que faziam isso a todas as sopeiras. Na altura chamavam-nos assim. 

Os meus patrões foram os meus padrinhos de casamento. A menina da casa, catequista, solteirona e muito beata, dizia-me que as mulheres deviam obedecer aos maridos. Habitou-me a ir todos os domingos à missa. Ora, o meu marido nunca foi crente. Depois de casada, a questão levantou-se. Até ao dia em que o meu confessor me lembrou que o importante era ser bom pai, bom marido, trabalhador. Não se ia ou não ia à missa. 

De vez em quando, a menina da casa comprava-me um pastel de nata. A cozinheira ficava de lado e isso custava-me. E eu, com os meus 17 anos, perguntava à menina: “Se na igreja dizem que todos somos irmãos em Cristo, por que razão cá fora não somos todos iguais?” Sempre a mesma resposta: que não tinha culpa de ter nascido assim. 

Os donos da casa eram salazaristas. Nas eleições do Humberto Delgado, a minha mãe foi a única mulher na Arrifana que teve direito a votar. O voto da minha mãe em Humberto Delgado nunca foi contado. Desapareceu.
Em janeiro de 1974, a minha mãe ainda vivia. Três meses depois, pôde assistir ao 25 de Abril. O 25 de Abril foi a melhor coisa que tive na minha vida. O nascimento dos filhos foi lindo, mas o 25 de Abril não lhe fica atrás. Recordo o primeiro 1.º de Maio como se fosse hoje. Um dia especial por todas as razões. E mais esta: nesse dia, o meu Rui deixou de usar fraldas. Um alívio porque eu lavava a roupa no tanque.  

Depoimento recolhido por Alexandra Tavares-Teles 

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