Onde eu estava há 50 anos por... Maria Fernanda Dinarés

Onde eu estava há 50 anos por... Maria Fernanda Dinarés

Nasceu em Alhandra em 1930. É pensionista.
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Nasci numa família de proprietários rurais, uma de três irmãos. Toda a vida lamentei não ter podido estudar mais. Frequentei a escola industrial, mas interrompi aos 16 anos, altura de sonhos. O meu era ser médica.

Casada com 24 anos, tratar do marido e das filhas, entretanto nascidas, tornou inviável qualquer possibilidade de retomar os estudos.

Tratar da casa, porém, não me causava problema. Tinha uma empregada, o que me permitia ocupar o tempo com tarefas que me agradavam, por exemplo, tricot e costura.

Havia perto de casa uma pastelaria boa, que raramente frequentava. De tempos a tempos, ia a Lisboa com as miúdas, às compras. Numa dessas vezes, assisti a uma carga policial sobre manifestantes, refugiada, com as meninas, numa loja da rua Augusta, testemunhas da violência do regime.

Em abril de 1974, vivia em Vila Franca, terra de província conhecida pelos touros e pela feira. E pela resistência antifascista que fazia com que houvesse por ali muitos informadores da PIDE. Lembro-me de gostar de ler os livros que o meu marido, às escondidas, levava para casa, livros proibidos que colocava nos lugares recônditos das estantes. E os discos, também proibidos, ouvidos em surdina ainda mais porque os pais de Franco Nogueira, ministro de Salazar, viviam no prédio. Aliás, dizia-se que um dos outros vizinhos era um agente do PIDE.

Às nossas filhas pedíamos que tivessem cautelas, que não falassem dos livros que viam em casa e que não cantassem na rua. A mais velha, com 17 anos, já se interessava por política e frequentava a cooperativa Alves Redol, casa cultural ligada à resistência antifascista - Alves Redol era uma figura muito admirada e querida em Vila Franca. E a mais nova, com dez, que dava atenção a tudo e a quem nada passava despercebido. Recordo que a levei comigo à despedida de um familiar mobilizado para Angola. No cais, a banda tocava enquanto as mulheres e homens choravam. Os soldados acenavam do barco. Mal entrou em casa, sentou-se no chão a chorar. “Aquela música, mãe, aquela música”. Tinha uns quatro anos.

Vila Franca de Xira era uma terra tranquila, quando não havia cargas policiais. Recordo a tarde em que, à janela com a minha filha mais nova, vimos passar um rapaz. Pouco antes, tinha havido uma manifestação, mas o miúdo caminhava calmamente. De repente, avançam contra ele dois GNR a cavalo, com os sabres no ar. Um dos sabres atingiu o miúdo e rasgou-lhe o casaco. Lembro-me de ter gritado da janela. “Parece impossível. Ele não fez nada”.


Na ditadura, destinava-se às mulheres uma educação particular. Tive alguma sorte: fui criada numa casa em que rapazes e raparigas eram tratados da mesma maneira, excetuando, claro, a questão dos estudos. O meu marido, apesar de muito ciumento, nunca me proibiu de fazer isto ou aquilo. De me vestir assim ou assado. Tirei a carta de condução já com 49 anos, encorajada por ele. E mesmo na roupa, raramente interferia. A única coisa em que senti alguma pressão foi na adoção do nome dele.

No dia 25 de abril, o meu marido saiu para o emprego (era funcionário da Caixa Geral de Depósitos). Um pouco depois telefonou e disse-me para ligar o rádio. Percebi então o que se estava a passar, porém sempre receosa de que as movimentações viessem do outro lado. Felizmente correu bem.

Eleições livres foi a primeira das melhores transformações que chegaram com o 25 de abril (nas eleições a que concorreu o general Humberto Delgado, quando o meu marido chegou à mesa de voto para votar disseram-lhe que ele já tinha votado). Pela primeira vez as mulheres, sem exceção, podiam votar. A lei que passou a permitir o divórcio foi também muito importante, ainda que nunca me tivesse passado pela cabeça divorciar-me. Para mim, a maior conquista, a que mais me marcou, foi o direito à interrupção voluntária da gravidez. Parece que há hoje quem queira retirar-nos essa conquista. Fico muito triste. Porém, aos 93 anos estou disponível para voltar a travar essa luta. 

Depoimento recolhido por Alexandra Tavares-Teles

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