Onde eu estava há 50 anos... Fernando Antolin
Em março de 1974 tinha 18 anos e muito tempo livre. Tendo ficado com uma disciplina do antigo 7.º ano do liceu por fazer, tive de continuar em Santarém entre explicações e um trabalho como auxiliar de escritório, para os gastos próprios.
Fizera há seis meses o chamado recenseamento militar - vulgo dar o nome para a tropa . A partir daí, foi-se agudizando a perceção duma já não tão distante incorporação militar, com a consequente ida para a Guerra de África, onde alguns colegas do liceu, mais velhos, tinham estado, com as mortes de um ou outro a pesarem na minha ideia de não estar disposto a “heroísmos” inúteis. Todos os dias, as páginas dos três jornais que se compravam em minha casa - Diário de Notícias, Diário de Lisboa e República -, anunciavam listas de nomes de miúdos que perdiam vida a servir a pátria.
Avesso a esse sacrifício, ponderava, pois, a saída na altura devida, em direção a casa de familiares que estavam em Espanha e França.
Absolutamente certo de que era o que queria fazer, partilhei a minha intenção com os meus pais. O pai aceitou de imediato. A mãe, mais conservadora, colocou algumas reservas, deixando-me a sensação de que não lhe agradava que um filho não fosse defender a pátria.
Santarém é uma cidade “militar”, com a Escola Prática de Cavalaria. Todos os dias se viam blindados e homens fardados. Na livraria que frequentava conheci Salgueiro Maia (ainda não era Salgueiro Maia figura histórica). Mas já então, interpelava e sondava os jovens, numa sala que havia nessa livraria. “Então malta?”, dizia, tentando sondar a nossa sensibilidade à guerra colonial.
Naquele tempo, Santarém era uma cidade estreita, fechada em grupos. Venho de uma família da média burguesia. Pai, gerente duma firma familiar, fundada pelo seu avô paterno, com atividade vinícola, e mãe doméstica, filha de um médico. Uma irmã quase três anos mais velha. O círculo de amigos era semelhante, uma dúzia de casais, todos com filhos, reuniões semanais em casa de uns e de outros, normalmente ao jantar de sábado, com a animação e confusão que se calcula.
Éramos aquilo a que se chamava, ao tempo, gente remediada, com uma exceção, um tio, médico pediatra. As conversas, entre adultos, eram sobre os aspetos do dia-a-dia, um ou outro “escândalo” na cidade, o trabalho de cada um - quase todos tinham ligação ao “campo” - o percurso escolar dos filhos, por aí. Nós, os mais novos, íamos falando de aulas, da feira do Ribatejo e da possível animação daí vinda, do cinema - em Santarém funcionavam duas salas - programas para o fim de semana, que era apenas de dia e meio, já que as aulas, no liceu, ainda eram dadas ao sábado de manhã. Turmas já na altura de 30 alunos, na maioria filhos da tal burguesia da cidade.
O liceu era misto, as namoradas eram, principalmente, as colegas. Os bailes durante a feira do Ribatejo, ou, pontualmente, os bailes de “garagem”, eram o local onde tínhamos mais à-vontade para uma relação mais desinibida.
A 24 de abril de 1974, estudava, no meu quarto e, contrariamente ao que costumava fazer, liguei um pequeno rádio, durante uma pausa para um cigarro - Português Suave sem filtro quando o dinheiro era pouco, Gitanes ou Gauloises, quando abundava. Não recordo a estação apenas o anúncio de que faltavam cinco minutos para a meia-noite e iríamos ouvir E depois do adeus, pelo Paulo de Carvalho. Deitei-me pela meia-noite, quando o meu pai me acordou, de rompante, às 6 e picos, vivia já noutro país.
Depoimento recolhido por Alexandra Tavares-Teles