Onde eu estava há 50 anos... Estela Marta da Cruz
Nas vésperas do 25 de Abril vivia no Porto. Dava aulas de Biologia no Liceu Alexandre Herculano e o meu marido, médico ortopedista, trabalhava no Hospital de Santo António - a impressão que hoje tenho é a de que estava sempre de urgência. Tínhamos dois filhos, um rapaz de 6 anos e uma rapariga de 5, diferença de apenas 11 meses que me permitia ter pouquíssimo tempo livre, para não dizer nenhum. De facto, daqueles anos, a memória que tenho é a de que a minha vida se reduzia a preparar aulas e a cuidar dos filhos.
O meu filho nasceu em Nampula, onde vivi durante dois anos por ter decidido acompanhar o meu marido, destacado para o Ultramar pouco depois do nosso casamento. A Guia de Marcha para a guerra alterou profundamente os nossos projetos. Deixar a minha vida tranquila e confortável, filha mais nova de proprietários em Valadares - o meu pai era dono do Cinema Eduardo Brazão -, para acompanhar o meu marido num mundo desconhecido não foi uma decisão fácil. Mas senti que não havia alternativa. Não me casara para ficar sentada à espera dele. Longe dele. Por isso, quando ele chegou a Nampula a bordo do paquete Niassa, já eu me encontrava no cais de Nacala.
Parti da metrópole de avião. Fiz do Porto a Lisboa em comboio, ainda a tempo de ver Música no Coração, o filme que passava num dos cinemas da Avenida da Liberdade, antes de ir para o aeroporto.
O meu pai nasceu em África, tinha, por isso, alguns parentes em Moçambique. Fui recebida numa casa simpática, com cozinheiro e mainato (o rapaz negro que fazia recados, tratava da roupa e tomava conta das crianças). Mas as saudades eram muitas. Trocava com o meu pai cartas diárias. Oito e nove páginas de desabafos e descrições do que fazia. Desde logo, as aulas no liceu de Nampula - onde, entretanto, me empreguei e me chamavam, por muito que as minhas fossem pelo joelho, professora minissaia.
Às aulas de Biologia acrescentaram-se as de Matemática, de Física, e até de Geografia, o que me obrigou a estudar. Habituada a fazê-lo em cafés - rotina portuense da minha geração -, comecei a frequentar a confeitaria do único hotel em condições de Nampula. Ali se juntavam e faziam má-língua as senhoras da cidade. Via-as a observar-me, quando ia à piscina, talvez por ser a única que usava biquíni.
Com o marido no mato, a vida estava longe de ser tranquila. Só os reencontros ao fim de semana nos retemperavam. Fazia 10 horas de automotora seguidas de quatro de machimbombo (autocarro), sempre temendo um ataque dos “turras”, como então chamavam aos guerrilheiros.
O meu marido acompanhava os destacamentos quando estes saiam para as missões, dormindo muitas vezes debaixo da Berliet Tramagal. Três médicos para um batalhão. O meu marido foi o único que não teve direito a louvor, castigo por se recusar a dar aos indígenas doentes apenas os dois comprimidos da conta, que pouco ou nada iriam adiantar (o racionamento de comprimidos destinava-se a evitar que fossem roubados pelos terroristas). A justiça era pouca: enquanto os patrões tinham os filhos a estudar na metrópole, os trabalhadores das machambas eram explorados pelos senhores das terras.
Em 1967 mudei-me para Ribaué. Vivia numa casa com chão de terra batida e fogareiro a petróleo. E eu que levara para Moçambique O Livro de Pantagruel. Em Ribaué engravidei. Tinha 21 anos. O médico disse-me que o bebé teria de nascer de cesariana, mas também me disse que duas mulheres haviam morrido às mãos do anestesista. O meu filho acabaria por nascer na Casa de Saúde de Marrere, ao fim de uma viagem de 250km comigo em trabalho de parto, numa carrinha de caixa aberta, aos solavancos, no tempo das chuvas, com o meu marido ao lado, armado com um lençol e uma tesoura.
De África recordo o odor da terra molhada. O calor. As mangas e as bananas maravilhosas. Recordo Nampula, cidade de província, de avenidas longas e poeirentas. Recordo os dois anos de Moçambique como uma prova de amor ao meu marido.