Há 50 anos tinha acabado o curso de Filosofia da Faculdade de Letras de Lisboa. Estava casada e era mãe de dois filhos. Trabalhava como freelancer em publicidade e o meu marido num ateliê de arquitetura. A liberdade de horário permitia-me tomar conta dos meus filhos, dois, ainda bebés. Naquele tempo, não era muito comum deixar as crianças nos poucos infantários que havia. Sempre que precisava, contava com a ajuda de familiares. .Da janela das traseiras da minha casa, junto à Praça do Areeiro, ainda se via o campo. Lisboa, a norte, terminava ali. Viam-se umas ruínas daquilo que eu imaginava ter sido a casa de uma quinta. Para lá desta, nada mais havia. Pelo menos, nada que fizesse parte do meu horizonte, se bem que soubéssemos que a quinta escondia, no seu sopé, um bairro de lata. Dali até Marvila, bairro pobre de um operariado obscuro. Para norte, ficava somente o aeroporto, onde em criança ia passear com os meus pais ao domingo, tomar café na esplanada e ver os aviões a levantar voo. .A Lisboa que eu vivia era (ainda é) uma zona carismática da cidade, a Lisboa moderna cuja construção começou nos anos 50. Foi aí que nasci e cresci. O ambiente em minha casa era o normal de uma família da pequena burguesia lisboeta. O meu pai, um antissalazarista e anticlericalista ferrenho, era conservador nos costumes. A minha mãe, cuidava da casa, afadigada na gestão do dia a dia. .Não tive, ao contrário de grande parte da minha geração, uma educação católica. Contudo, a minha família era muito conservadora nos comportamentos admitidos às meninas e aos meninos. O ambiente era liberal, mas exigia compostura. Percebi cedo que era “uma menina”. Eram-me permitidas amizades com colegas, mas vigiadas as minhas preferências. Namoros eram absolutamente proibidos. .Há 50 anos sentia que não havia abertura ou desvio à regra social. As mulheres eram treinadas para serem silenciosas e subordinadas. Fui educada assim. O meu irmão, mais novo dois anos, tinha liberdade. Eu horário de entrada e saída. A mesada dele era superior à minha porque “os rapazes tinham mais despesas”. .Quando entrei para o liceu, o Maria Amália Vaz de Carvalho, a minha vida animou-se bastante. Apesar de regras rígidas que tinham de ser rigorosamente cumpridas havia um ambiente tranquilo e descobria-se a amizade. As empregadas, designadas então de contínuas, vigiavam atentamente as nossas deslocações, era proibido estar nos corredores quando tocava a campainha para a entrada na aula, e não nos podíamos atrasar um minuto que fosse nos recreios. Também recordo o refeitório, muito solene, mesas redondas, os professores num estrado ao cimo da sala, nós éramos servidas pelas empregadas, e não se podia deixar restos no prato. Embora o ambiente social da família fosse, na generalidade, semelhante, tive colegas que vinham de ambientes mais humildes e até de fora de Lisboa. Privei com algumas e apercebi-me que nem todas iríamos ter o mesmo destino. .Íamos muito ao cinema ver filmes censurados. Tal como eram censurados os livros que líamos, ou que não podíamos ler porque não se vendiam nas nossas livrarias. .A minha vida diária mudou radicalmente quando entrei para a universidade. Encontrei aí evidente contradição entre o real e o possível: a realidade era que já podia fumar em público (em casa não mo censuravam) e podia ir para o bar conversar e conviver com colegas e amigos, sem tabu de género; mas não podia usar calças nem, é evidente, usar minissaia, dentro do recinto académico. A Guerra do Ultramar levava muitos dos amigos, e pairava como um ameaça nas nossas cabeças. Um dia de abril, tudo mudou. Depoimento recolhido por Alexandra Tavares-Teles