Onde eu estava há 50 anos... Ana Maria Almeida Roque

Onde eu estava há 50 anos... Ana Maria Almeida Roque

Licenciada em Filosofia, mestre em Educação e Valores. assessora principal do Ministério da Educação, na reforma. Nasceu em Lisboa. Tinha 30 anos em 1974.
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Há 50 anos tinha acabado o curso de Filosofia da Faculdade de Letras de Lisboa. Estava casada e era mãe de dois filhos. Trabalhava como freelancer em publicidade e o meu marido num ateliê de arquitetura. A liberdade de horário permitia-me tomar conta dos meus filhos, dois, ainda bebés. Naquele tempo, não era muito comum deixar as crianças nos poucos infantários que havia. Sempre que precisava, contava com a ajuda de familiares. 

Da janela das traseiras da minha casa, junto à Praça do Areeiro, ainda se via o campo. Lisboa, a norte, terminava ali. Viam-se umas ruínas daquilo que eu imaginava ter sido a casa de uma quinta. Para lá desta, nada mais havia. Pelo menos, nada que fizesse parte do meu horizonte, se bem que soubéssemos que a quinta escondia, no seu sopé, um bairro de lata. Dali até Marvila, bairro pobre de um operariado obscuro. Para norte, ficava somente o aeroporto, onde em criança ia passear com os meus pais ao domingo, tomar café na esplanada e ver os aviões a levantar voo. 

A Lisboa que eu vivia era (ainda é) uma zona carismática da cidade, a Lisboa moderna cuja construção começou nos anos 50. Foi aí que nasci e cresci. O ambiente em minha casa era o normal de uma família da pequena burguesia lisboeta. O meu pai, um antissalazarista e anticlericalista ferrenho, era conservador nos costumes. A minha mãe, cuidava da casa, afadigada na gestão do dia a dia. 

Não tive, ao contrário de grande parte da minha geração, uma educação católica. Contudo, a minha família era muito conservadora nos comportamentos admitidos às meninas e aos meninos. O ambiente era liberal, mas exigia compostura. Percebi cedo que era “uma menina”. Eram-me permitidas amizades com colegas, mas vigiadas as minhas preferências. Namoros eram absolutamente proibidos. 

Há 50 anos sentia que não havia abertura ou desvio à regra social. As mulheres eram treinadas para serem silenciosas e subordinadas. Fui educada assim. O meu irmão, mais novo dois anos, tinha liberdade. Eu horário de entrada e saída. A mesada dele era superior à minha porque “os rapazes tinham mais despesas”. 

Quando entrei para o liceu, o Maria Amália Vaz de Carvalho, a minha vida animou-se bastante. Apesar de regras rígidas que tinham de ser rigorosamente cumpridas havia um ambiente tranquilo e descobria-se a amizade. As empregadas, designadas então de contínuas, vigiavam atentamente as nossas deslocações, era proibido estar nos corredores quando tocava a campainha para a entrada na aula, e não nos podíamos atrasar um minuto que fosse nos recreios. Também recordo o refeitório, muito solene, mesas redondas, os professores num estrado ao cimo da sala, nós éramos servidas pelas empregadas, e não se podia deixar restos no prato. Embora o ambiente social da família fosse, na generalidade, semelhante, tive colegas que vinham de ambientes mais humildes e até de fora de Lisboa. Privei com algumas e apercebi-me que nem todas iríamos ter o mesmo destino. 

Íamos muito ao cinema ver filmes censurados. Tal como eram censurados os livros que líamos, ou que não podíamos ler porque não se vendiam nas nossas livrarias. 

A minha vida diária mudou radicalmente quando entrei para a universidade. Encontrei aí evidente contradição entre o real e o possível: a realidade era que já podia fumar em público (em casa não mo censuravam) e podia ir para o bar conversar e conviver com colegas e amigos, sem tabu de género; mas não podia usar calças nem, é evidente, usar minissaia, dentro do recinto académico.
A Guerra do Ultramar levava muitos dos amigos, e pairava como um ameaça nas nossas cabeças. Um dia de abril, tudo mudou. 

Depoimento recolhido por Alexandra Tavares-Teles

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