Ana Vidal
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Onde eu estava ... Ana Vidal

É escritora. Lisboeta, tinha 17 anos em 1974.
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Neste dia frio de fevereiro eu estava a meio do meu último ano letivo no Liceu de Santarém. O antigo “sétimo ano dos Liceus”, portanto. Era boa aluna, estava dispensada de ir a exame a quase todas as disciplinas. O meu futuro próximo desenhava-se paulatinamente, sem grandes ondas à vista: a ida para Lisboa, para entrar na Universidade – Direito ou Filosofia, ainda não me tinha decidido – e, o que mais me empolgava, o mergulho de cabeça no meu primeiro voo para a independência. Tal como a minha irmã mais velha, já no primeiro ano de Economia e Finanças, e alguns dos meus primos, ficaria alojada na casa da Rua da Junqueira que uns tios nossos, sem filhos, punham à disposição de todos os sobrinhos durante o tempo dos estudos na capital. Tios esses que não viviam lá, o que fazia daquela casa uma espécie de República de estudantes, muito apetecida e ponto de encontro de todos os nossos amigos que viviam com os pais. Tudo se encaminhava, portanto, para um turning point muito desejado na minha vida. Mal eu sabia que, embora indo para Lisboa como planeado, estava a dois meses de um acontecimento que me trocaria as voltas, em todos os sentidos.

Somos cinco irmãos. Vivíamos nessa época em Azambuja, a terra da família do meu pai. O meu pai, veterinário de formação e agricultor, trabalhava em Lisboa para a Pfizer como diretor clínico da sua área. A minha mãe era médica, de Lisboa, mas o casamento tinha-a levado para província já com vários anos a trabalhar e uma vida independente, da qual fazia parte o plano de especializar-se em cirurgia que acabou frustrado pelas circunstâncias. Chegada ao Ribatejo, recém-casada e olhada de lado pelo conservadorismo local, cedo percebeu que a sua vida seria outra. A população do Concelho era muito pobre, com carências de toda a ordem e taxas de alcoolismo e suicídio assustadoras. Começou por fazer clínica em casa, dando consultas que eram quase sempre pagas em galinhas, ovos, até em bordados.

Acabou por decidir especializar-se em Saúde Pública e fez uma carreira como Diretora do Hospital, e depois como Delegada de Saúde. Foi toda a vida a cuidadora, confidente e conselheira de mulheres de vida duríssima, que a adoravam. E também de homens rudes, que primeiro a temiam e depois a respeitavam. Foi esse o exemplo de vida que nos deu. Lembro-me de levarmos sempre, nas férias de Verão, uma ou duas crianças da terra que arregalavam os olhos de espanto ao verem o mar pela primeira vez. E lembro-me de haver sempre lá em casa uma população flutuante de crianças e adolescentes, que a minha mãe abrigava enquanto os pais não endireitavam a vida.

Em casa não se falava de política. Eu tinha uma vida com muita liberdade e igual exigência de responsabilidade. Saía à noite, com os amigos, para as boîtes da moda em Lisboa: Stone’s, Ad Lib, Primorosa de Alvalade. Ou as de Cascais, para onde o bando apanhava o último comboio da noite e voltava a Lisboa no primeiro da manhã. Vestia minissaias dos Porfírios, kilts escoceses e calças com remendos. Escrevia poemas para a gaveta e montava a cavalo, duas das minhas paixões. Estava a um passo de descobrir o mundo.

Depoimento recolhido por Alexandra Tavares-Telles

Diário de Notícias
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