Alexandra Tavares-Teles, jornalista.
Alexandra Tavares-Teles, jornalista.D.R.

Onde eu estava... 114 dias,  114 testemunhos

Por Alexandra Tavares-Teles.
Publicado a
Atualizado a

Estava longe de imaginar que este se tornaria um dos desafios mais gratificantes do meu caminho profissional. Procurava-se um retrato do quotidiano, mesmo que filtrado pela passagem do tempo, e uma impressão de conjunto da forma como as pessoas viviam e se viam nesse mundo tão fundamental para o ethos do país: 1974. Os testemunhos que recolhi construíram imagens inesperadamente contrastadas da época.

Conceição Rosa, a jovem que nunca foi menina, que nunca quis mal ao país, apenas a quem a condenou ao analfabetismo, à pobreza e ao silêncio. Armando, que aos 21 anos fugiu à tropa, a salto, três dias de cansaço rumo ao Guadiana e muito medo de ser descoberto pela guarda portuguesa. Podia ter sido travado por Abel, um transmontano de consciência tranquila. Era Guarda Fiscal, e fechava os olhos aos miúdos que fugiam a salto e aos esfaimados que, em modestos barquitos, arriscavam a prisão por meia dúzia de foices e outras tantas alfaias de contrabando. Rita, carregando o apelido do avô, sentiu-se incriminada pelo sangue no pós-25 de abril. Maria João, a quem as cheias de 1967 roubaram a fé e a consciência de classe. João, com a casa invadida no pós-Revolução. Vera, que viu o sofrimento dos pais em tempo de PREC. Jaime, defensor de um país pluricontinental. Alice, a adolescente que, num mês, trocou os quintais com bananas e grades de cerveja Cuca, em Luanda, pelo granito gélido de uma aldeia de Trás-os-Montes - os mares pelas montanhas que não conhecia. Albina, a angolana que defende o regresso dos “brancos” a África. Hernâni, chegado a Lisboa em criança, tornado talismã porque se dizia que “tocar num preto dá sorte”. Diana, a jovem jornalista para quem resistir era o único caminho possível. Estela, que acompanhou o marido na guerra. Conceição, que esteve com o marido no exílio. Estudantes, no tempo em que gorilas guardavam as salas de universidade. Clandestinos, percorrendo cidades tristes e escuras. Padres, do Concílio Vaticano II e outros em batinas medievais. Raparigas, alegres, vistosas, esclarecidas, viajadas. Libertárias.

Horas a entrevistar. Dias a escrever. Revendo e lendo os textos a quem me confiou as palavras, as emoções, a dor, o riso e as vidas passadas, mas tão presentes.

A comoção dos dois lados do telefone: a lucidez de Lucília, criada de servir em Lisboa; o espancamento de Zé Pedro, comunista; os cravos de Celeste, a mulher que deu nome a uma Revolução; Maria, que acabou por contar “o que sempre calei”. A determinação de Jorge, um dos rapazes que decidiram seguir Salgueiro Maia.

Em abril de 1974, eu, Maria Alexandra, tinha acabado de completar 10 anos. É o mês da chegada do meu pai do exílio, a abrir caminho ao meu tio, também exilado. O mês de todas as lágrimas, de todos os abraços. De toda a esperança.

O 1.º de Maio de 1974 continua, 50 anos depois, a ser a tarde mais bonita da minha vida. Na Avenida dos Aliados, no Porto, com a minha mãe e os meus avós, de mãos dadas. Foi a tarde da Liberdade. E da libertação: tinha 10 anos e a voz macabra de Salazar, memória viva da minha mais tenra infância, só então deixava de me assombrar. Salazar desaparecia de vez, e eu nunca mais teria de desejar a morte de alguém. Terrível é um tempo que condena uma criança de 5 anos a sonhar a morte de alguém.

Um abraço grato a todos os que contaram uma pequena parte de quem foram e são. De todos guardo o nome.

Um agradecimento especial a Ana Vidal e a Gilda Ribeiro dos Santos, pelos amigos, muitos, que trouxeram.

E já agora, mais do que nunca: 25 de Abril sempre.

Artigos Relacionados

No stories found.
Diário de Notícias
www.dn.pt